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foto de Sônia Vill |
Na Rua Amapá, todo dia,
por volta do meio dia, um dos maiores crimes acontece na frente de todo mundo.
Seu Zé (que eu não vou me atrever dizer o nome verdadeiro dele, é claro),
ajeita a sua maquina de assar galetos, isso bem do lado da parada de ônibus. Do
outro lado da rua, um cachorro de nome Amarelo (esse nome eu dei a ele, devido
uma relação que já estabelecemos) senta religiosamente na calçada, na sombra,
logicamente, e assiste a aquele espetáculo. É uma máquina de assar galeto
giratória, que deve caber uns 30 frangos, todos assados na manteiga, assegura
Seu Zé.
Por volta do meio dia
você olha o aplicativo do celular. Passam o 020, o 409, o 070, mas nada do 071.
O 071 é um famigerado ônibus da empresa Borborema, único e histórico meio de
sair de Barra de Jangada até o centro do Recife sem precisar fazer uma
maratona. Outro preço que se para é o esperar. Você olha o aplicativo e nada.
Mesmo verde ele não vem. Não adianta reclamar.
Acontece que Barra de Jangada é também uma ilha. Para além da Ilha do
Amor, que por si só daria um romance, muita fofoca ou pelo menos o que falar,
Barra de Jangada se esconde entre o esquecimento e a distância. E lá perto,
onde o R$4,70 reside, em meio a um Terminal que sucinta um estudo sobrenatural
de caso.
Meio dia e meia e nada
do 071 chegar. Não adianta olhar no aplicativo, esticar o pescoço para olhar
pra esquina. Ele nunca vem. Não enquanto você estiver esperando. Quarenta
minutos em média que mais parecem umas duas horas. Pega a poeira, a falta de
sombra, o calor que faz no Recife e toda uma série de preocupação que nos vem à
tona, mesmo sem a gente esperar. Pedir. E ali está aquele cachorro. Olhando
pacientemente para aqueles galetos que rodam indiferentemente enquanto douram
na manteiga, assegura o Seu Zezinho, agora intimo de todos, devido à demora.
Doze e trinta e cinco. Lá vem ele. E é justamente naquele momento que aquele
crime acontece.
Enquanto o caça-níquel
da borborema se aproveita de nosso bolso e se aproxima daquele ponto, Seu
Zezinho se prepara tranquilamente para organizar os galetos que estão quase
prontos. Aquela crosta suave e douradinha na manteiga, aquela carne macia, com
aquela gordura no ponto derretendo em nossa boca, enquanto um vinagrete com
farofa passeia pela nossa boca. Depois vem a feijoada com arroz e uma coca-cola
bem gelada para regar, agregar, iluminar tudo. Se fosse um final de semana
teria uma cerveja gelada, amendoim e sorvete. Mas ainda é terça feira e lá vem
o Candeias pra nos levar pra outro mundo. Quem pegou o 020 pra tentar chegar
mais cedo em algum lugar, perdeu o pedaço do paraíso. Os ricos, aqueles que
andam no 072, opcional, geladinho, apesar das regalias, não saberá nunca o que
significa aquele ritual.
O cachorro se levanta.
Abana o rabinho. Bota uma palma de língua pra fora, agora salivando como quem
vai morrer. Aquilo certamente não é por conta do calor apenas. E lá estava eu,
puto. Simplesmente puto e atrasado. Seu Zezinho desliga a máquina em um minuto,
ajeita uma flanela no ombro esquerdo e olha pra nós meio assim de ladinho, como
quem pergunta alguma coisa sem perguntar. Tarde demais. O ônibus para, a gente
sobe, recebe o calor daquele emaranhado de ferro e lata superaquecido e cai pro
mundo. Olhando pela janela, enquanto o 071, em meio ao inferno do calor que faz
no Recife parte, dois ou três seres humanos olham para a máquina do galeto,
esperando quem sabe ao menos sentir o cheirinho, ver o dourado daquela bela
carne. Mas só quando o carro parte é que Seu Zé abre a porta para realocar os
galetos. Só quando o R$4,70 surge no horizonte é que aquele aroma perfuma a Rua
Amapá e deixa Amarelo doidinho. Só na hora de ir, e sempre atrasados que vemos
aquele crime cotidiano (menos nas segundas, que ele não coloca o galeto na
manteiga nas segundas feiras). Que ingratidão. Aquela imagem daquele galeto vai
com a gente o caminho todo e segue. Passa a Avenida Boa Viagem, pega pela
Conselheiro Aguiar toda, pega a Conde da Boa vista e nos faz reféns de sua
intriga. Aquela imagem irá nos acompanhar, a depender do trabalho, o dia
inteiro. Aquela imagem irá nos acompanhar até a volta pra casa. Até a hora do
jantar. E nos fazer sofrer amanhã de novo e aquela imagem nos perseguir e nos
fazer sofrer.
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