Espero que Dona Renata, que eu sei que não é de usar as redes sociais, não veja esse Comentário que aqui rabisco. Uns anos atrás, mais precisamente em outubro de 2023, deu a minha filha, na época com recém completados três anos, uma boneca que teria sido de sua netinha, portanto, guardada e cuidado com todo o esmero. A boneca, ainda na caixa, foi recebida pelo criança com o maior entusiasmo possível e recebeu, na hora, na lata, um novo nome de batismo: Priscila. Dona Renata foi uma alegria só. Até hoje ela me pergunta “como é que está Priscila” ao ver esse pai envergonhado, desconfiado e guardando um segredo a essa amiga que ele tanto estima.
Acontece que naquele dia mesmo, nem bem deu tempo de guardar a caixinha do respectivo presente e aquela relíquia era toda riscada com caneta Bic azul, e olha que a criança em questão não costumava sair riscando paredes ou portas, como é comportamento esperado de alguns bebês em sua descoberta da vida. Dona Renata me pergunta até hoje “como está Priscila” e eu não tenho coragem de lhe dizer que a mesma passou por um processo de tatuagem facial forçada, teve uma perna arrancada e ainda hoje desperta um medo e tristeza quando a vemos. Outro dia eu me acordo de madrugada, tento me levantar e, susto! Me deparo com o rosto da boneca toda tatuada na cadeira ao lado da cama, de frente pra mim, me encarando. Essa semana recebo em minha bolha as notícias de que tem gente comprando bonecas caras, chamando elas de filhas e exigindo respeito quando forem até um postinho de saúde para uma consulta com a boneca/filha imaginária.
Passei a gostar mais de Priscila. Ela não tem culpa de cair nas mãos de uma menina de três anos de idade, nascida ainda mais em época de pandemia. Toda tinta do mundo não é suficiente para a curiosidade de quem viveu seus primeiros dois anos de vida praticamente guardada do mundo. Mas onde foi que a gente adquiriu tanta solidão, individualismo e paranoias, ao ponto de exigir respeito para nossos delírios de luxo?
Sim. As mães do mundo real não conseguem muitas vezes ter tempo para “curtir” a maternidade. Não dá pra brincar de reborn quando se consulta o preço do leite, do remédio que não tem no postinho ou quando é preciso sair correndo para deixar o Baby na creche, correr para chegar em tempo na parada de ônibus e aguentar patrão lixo e trabalho péssimo para chegar nada glamourosa em casa.
E eu ainda me arrisco aqui ao cancelamento e usando meu lugar de fala, para lembrar como não deve doer quando o reborn da vida real, que não fica sem pilha assim tão fácil, solta um “eu não amo mais você” na sua cara.
A gente vê cada dia mais o adoecimento dessa sociedade. É uma infantilização generalizada, uma exaltação da compactação de tudo com a desculpa de que é preciso ganhar tempo (afinal, é sobre dinheiro de que estamos falando), a romantização de um passado que não era nem tão bom assim, a venda de pílulas de nostalgia que nos torna pessoas chatas, carrancudas e vazias, os insuportáveis com smartphones, querendo/tendo que ter resposta pra tudo no meio de atualizações de velhos costumes.
A carona virou UBER. Fofoca atende pelo nome de “X” agora. Videolocadora atende pelo nome de streaming. Todo dia aparece uma centena de novos sinais do Apocalipse e a velha exploração agora atende pelo singelo nome de empreendedorismo e manda você se virar mandando emoji de carinha sorrindo e texto cópia/cola criado por IA. Priscila ainda resiste. Existe a inocência da criança que não larga a boneca desde o dia em que ganhou de presente e ai de quem diga que ela está meio esquisitinha. E em meio a tanta novidade que já surge com o prazo de validade vencido acho que toda a nossa sociedade tá precisando mesmo de um “reborn”. Mas um de verdade.
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