Pai




   Definitivamente não conhecemos nossos pais. Não enquanto não criamos em nós a maturidade suficientemente exigida para derrubarmos nossos ídolos, desafiar autoridades estabelecidas, levantar questionamentos, atrair nossas próprias brigas e desavenças, achar o humano no lugar onde vemos deuses. Assim eram nossos pais. Outro dia reparei numa foto em que estava minha mãe e seu mais novo casal de netos. Alguns meses, sentados no colo da avó com aquela cara da maior felicidade do mundo. Minha mãe, quatro netos, uma de brinde e outro a caminho. Cabelos brancos relatando seus dias, denunciando seus caminhos. E lá está ela, dona Sueli e dois bebês no colo e meu irmão ao lado, esboçando uma cara de preocupação. A cara do meu pai. E lá também está ele. Cabeça branca como aqueles coroas que se vestem de papai noel nos filmes da Sessão da Tarde pra nos fazer lembrar que em nossas casas não tinham chaminés.

   Mas lá está nosso pai e seus cabelos brancos, examinando seus netos, procurando traços seus naqueles seres pequenos, resumos de seus filhos, filhos de seus filhos. Observando talvez como a vida passa tão rapidamente e de forma (ou não) tão ingrata. E esses pequenos, mesmo criados com todo o esmero, dedicação e calma da vida, serão caixinhas de surpresas sempre. Ali me veio um encontro de dois momentos aparentemente pouco recorrentes. Gabriel, o primeiro neto, recebeu de minhas mãos um pequeno tesouro do mundo dos garimpos dos sebos do Recife. Um exemplar de um livro comprado para ele em ocasião de seu nascimento, isso em mil, novecentos e lá vai o trem. O livro em questão havia pertencido a nossa infância quando, nosso pai, vigilante por profissão, costumava programar o videocassete para “pescar’ os filmes na madrugada. Trabalhando de noite, sustentando um ritmo num tal de 12x36, hoje entendo do motivo que o fazia evitar ficar assistindo seus filmes de faroeste de madrugada: minha mãe. Dona Sueli.

   Meu pai não sabe, mas aquelas fitas gravadas me proporcionaram assistir as grandes entrevistas do Jô Soares, especialmente aquela do Chico Anysio, onde ele recita seu “Monólogo Mundo Moderno”. Assisti, decorei, escrevi numas folhas de papel pautado e apresentei na escola, tantas e tantas vezes que até já perdi a conta. Ainda hoje, se apertar um pouco sai tudo direitinho. “Maldito mundo moderno”. Gabriel, meu sobrinho, seu neto, não sabe, mas o livro que lhe dei de presente inspirou um desses filmes pescados nas madrugadas do videocassete, um dos poucos que nosso pai nos permitiu ver. Sabe aquela coisa de abaixar o volume quando tocava a trilha sonora principal? Ou mudar de canal quando rolava uma ceninha de beijo? Era bem isso. Mas meu pai também não sabe que, por causa dele, passei a gostar de Beatles, Elvis, Reginaldo Rossi e de um outro certo Rei, o do Baião. Tudo naquelas fitas velhas contendo o programa do Jô Soares. Outra coisa que eu também não vou entender, nem decifrar nunca: a genética da poesia. 

   O habito de ler herdei de minha mãe. Achava eu. Reparando bem, herdei dos dois. Minha mãe contando que Gabriel ‘devorou’ o livro, literalmente, ali sentadinho, parecendo com o ‘coroa’ quando se sentava no quintal, em sua cadeira de balanço, rabiscando seu livro de capa preta. Rabiscado com canetas diversas, coloridas, a sua organização específica parecia dar aquele livro um outro sentido além do doutrinário, do repetitivo e atrasado. E veja que interessante: meu pai, eu e meus irmãos vendo o filme sobre uma guerra de botões, um livro achado anos mais tarde para matar uma curiosidade comparativa literária e um outro rebento, comprovando a originalidade da obra citada. Um neto, um filho, um avô. Uma obra reverberando risos por gerações.

    Um hábito sadio e saudável pela leitura. Homens modestos e insignificantes, aproveitando certo saudável privilégio de ler o mundo. Ler os rostos ao redor. Ler a preocupação na cara do pai/irmão/avô, notando o peso dos problemas do mundo, que sem dúvida pesam mais do que a mão de uma criança, ou as guerras dentro e fora de nosso mundo, guerras essas que não são por causa de uns simples botões. O peso que não é o de uma moeda qualquer. Aquele senhor de cabelos brancos, depois de fazer e ver tanta raiva possível, alimentar e educar três mosqueteiros e uma mulher de fibra, vivendo em uma das estradas aparentemente difíceis de ver nascer uma flor, agora vê seus filhos serem pais, alimentar seus primeiros cabelos brancos e ler, a seus modos, claro, o mundo. 

   Ler o mundo. E ler o mundo é algo delicado e complexo. Ler o mundo se inicia por um gibizinho da Turma da Mônica, um livro de poesia do Augusto dos Anjos, umas crônicas do Rubem Braga e as entrevistas do Jô, as músicas do Djavan no fone de ouvido, o pagode dos anos noventa na casa do vizinho, as filhas do vizinho, o sorriso das filhas do vizinho e o amanhã futuro.

   Ler o mundo é muito perigoso, Kelly, Alana Sofia, Gustavo, “Pacotinho”, Gabriel, meu filho/filha que tá pra cegar também por aqui. Ler o mundo nos obriga a ser críticos, a querer mudá-lo, olhar as outras pessoas a nosso redor, quebrar a tela, o espelho, desligar os aplicativos e abrir os olhos. Ler o mundo ao redor nos obriga a ouvir, a ver as sutis mensagens deixadas pelos prédios e muros pichados, os olhares dos outros pais de família na correria de um trânsito lotado num dia nublado numa avenida congestionada dentro de um ônibus e sem um tostão furado. Ler o mundo nos obriga a viver e ver que viver vale a pena se alma não for pequena. 

   Ler a vida nos faz criar a compreensão para saber que nossos pais e filhos não são perfeitos, como personagens de um conto ou crônica que certamente não passam no horário nobre da televisão. Ler o mundo nos obriga estar atentos, como aquelas fitas VHS que eram apagadas todos os dias pelo nosso velho, nos obrigando escrever num papel rapidamente, decorar o texto, refletir a fala, como uma guerra e botão que de filme virou livro e pesquisa num sebo, que virou filme de novo, assistido com nostalgia, dado de presente com esmero, transformado em herança de carinho mesmo que aparentemente insignificante. Pensar, Gabriel, dói, como sempre dizemos. Mas a vida também é feita de dores, seja na chegada ou na despedida. Mas a vida é uma guerra, seja pelo amor, pelo alimento, pela nossa alma ou por meros botões. Como aquele livro de capa preta todo colorido por dentro, tom subversivo. Como a mesma cara que tu faz quando tá do lado do teu pai, que parece meu pai, que vai parecer teu pai quando tu perpetuar essas pequenas heranças, essas que nos pertencem e que serão eternas. Queira o tempo ou não.  

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