As testemunhas de Dona Bete

 



 



Dona Bernardete não bebia, não fumava, não fazia uso de nenhum tipo de remédio e, pelo que consta em sua ficha, também não possuía nenhum tipo de doença genética,  transtorno nem histórico familiar de qualquer mal congênito.  Naquela tarde de domingo arrumou a feira como de costume, aguou as plantas e fez seu chá de camomila. Por volta das quinze e trinta começou a sofrer de espasmos, a tremer toda e suar frio.  Caiu antes de sentar no sofá.  A filha, Gorete, ligou para o vizinho, seu Judas, que não tardou descer as escadas, aferir a pressão da vizinha, tomar seu pulso e ligar para o SAMU. "Como é bom ter um vizinho enfermeiro". 


 Dona Bernardete não bebia mas as suas taxas de glicose não andavam nada bem. Foi levada pra UPA e internada na ala vermelha. Pediram para a família providênciar acompanhante e documentos.  A situação inspirava cuidados.  Ligam para Aldair Benevides Honestino da Trindade, marido da agora falecida. 'Sim. Dona Bernardete não resistiu, teve um AVC e foi vítima de um aneurisma. Pouca coisa poderia ter sido feita. Uma pena.  Que Deus conforte seus familiares'. Benevides era dono de um armazém, até grandinho, no bairro vizinho, e chegou às pressas, ainda com a roupa do trabalho melada de gracha.  Foi aí que a coisa pareceu feia. 


Dona Bernardete não bebia mas, de besta, não tinha nada. Ainda na frente da UPA apareceu um senhorzinho, no alto de seus quase sententa anos, de nome Jeová Severino e se dizendo 'esposo legítimo' da falecida. O caldo engrossou quando um negão de quase dois metros e meio chegou aos prantos tentando enburacar na UPA. sem máscaras, plena pandemia,  tiveram que segurar o homem que se derretia em lágrimas. Depois de uma água com açúcar os soluços diminuíram.  Seu nome era Kleber Rodrigo,  tinha trinta e quatro anos e jurava de pés juntos, isso foi o que deu para escutar, que também era casado com a falecida. 


-Podem parar tudo, agora!


Um terceiro homem, baixinho,  meio careca e um pouco barrigudo, na casa dos cinquenta anos mais ou menos, mostrava uma pistola. Já chegou dando tiro pra cima, desconsolado. Era também marido de Bernardete e não se confirmava com a notícia. A PM o imobilizou enquanto ele gritava que só iria se conformar quando visse o corpo. 


Um quarto homem apareceu: Raul, mestre budista. Literalmente Dona Bernardete não bebia mas não tinha nada de besta. Custou um pouco entender o seu inglês carregado, quando ele insistiu em se lamentar que eles só estavam na posição vinte e três do Sutra. Ameaçou se matar. Chamaram um enfermeiro parrudo da UPA que segurou o moreno distinto, cor de chocolate, pela cintura. 


A essa altura já me perguntavam se eu acreditava naquilo, mas já era tarde, a imprensa já tinha chegado no lugar. O próprio delegado teve que ser chamado para resolver aquele rebuliço,  já que a vizinhança inteira tinha quebrado a quarentena para ver o desfecho daquele fato. Leonel, jovem  desempregado colocou uma mesinha, pôs umas duas garrafas de café e um bolo de rolo já cortado em fatias para aplacar a fome da curiosa multidão que aparecia. Não deu pra quem quis. 'Vai dar sede, viu?'. Danilo, porteiro do condomínio vizinho à UPA já anunciava que a garrafinha de água custava dois reais. Dona Renata também se adiantou: Ligou pras meninas para trazerem as cadeiras de praia e o material do crochê que o assunto hoje seria pegado. 


Firmou-se uma vigília em frente à UPA. A demora na liberação do corpo só trouxe mais aperreio e aperto para a família dividida em tamanha notícia. Na Internet aparecia um corte de um possível affeare entre dona Bernardete e o Rei Roberto Carlos. Sua assessoria, claro, negou os boatos, mas não quis se pronunciar quanto aquela enorme coroa de flores com os seguintes dizeres: 'descanse em paz. Sempre seu, RC'. 


Dona Bernardete não bebia mas, de besta, não tinha absolutamente nada. Para o Fantástico o 'suposto' legítimo esposo, Aldair Benevides Honestino da Trindade insistiu que 'a mulher era quase uma santa. Só saia de casa para ir pra missa aos domingos, no preparo da sopa de quinze em quinze dias, num brexó solidário que ela frequentava sempre no fim de cada mês em Abreu e Lima e no bingo beneficente', esse ela já não gostava muito, mas costumava ir com toda a família.  


O enterro de Bernardete foi coisa primorosa. Apareceram pelos menos mais uns seis indivíduos se dizendo 'donos do coração de Dete, Detinha, Berna, Náná ou Nanázinha'. Ninguém acreditou quando um helicóptero ficou sobrevoando o Cemitério de Santo Amaro procurando onde pousar. Eram o  Denzel Washington e o futuro vice-presidente Geraldo Alckmin dizendo detentores de provas cabais que Bernardete havia jurado amor eterno para os dois. Geraldo,  muito discreto, tentou se esconder das câmeras, Denzel também, já que também eram homens comprometidos. 


Foi uma confusão.  O Padre negou-se a rezar a missa. Um pastor famoso, desses que costumava encher as redes sociais gritando e cuspindo feito cachorro doente também se negou a dizer algumas palavras para a irmã em Cristo que infelizmente partira. Meses depois vazou um vídeo extremamente comprometedor entre o pastor e a defunta, em poses inspiradas nos Cantares e falando frases em línguas BEM estranhas. Perguntado ele respondeu: foi Deus quem me mandou amar Bernardete,  aquela gostosa. Cortaram a entrevista que tinha ido ao vivo ao ar. 


Dizem no bairro que o Aldair teria sido visto embarcando para a Europa dias depois do enterro. Ele teria vendido dois diários de sua falecida para uma grande editora espanhola, que teria vendido os direitos para lançar, além da biografia inspirada nos diários,  três filmes sobre Bernardete,  um reality show com Gorete, a única filha dela e uma peça gravada e encenada em formato áudio drama com uma orquestra coreana. Para compor  todas as vinte e sete músicas do espetáculo chamaram cantores de K-pop, fora as camisetas, os bottons,  os pôsteres e para gerenciar toda a marca que agora diziam em letras garrafais: 

 Dona Bernardete não bebia, mas de besta ela não tinha absolutamente nada. 




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