Filas

 




Não se isso também acontece com vocês mas sempre que estou numa fila ela costuma enpacar logo na minha vez. Sexta-feira fim de tarde,  entro no supermercado,  vou encarar o caixa rápido em plena véspera de feriado esticado. Que acontece: faltando 5 pessoas para minha vez e meia hora tornan-se uma eternidade.  

Fila no banco. Senha número 336. No painel de atendimento está no 55. Quase termino o livro em mãos e, quando chega a nossa vez: a Internet cai, o sistema falha, o cara que devia te atender aproveita pra dar uns pegas em uma das amigas funcionárias e volta com a camisa aberta, toda amassada e com uma mancha de batom enorme no pescoço. É a vida né? Sabe como é. Sei é de nada. Em menos de três minutos ele desbloqueia meu cartão de crédito,  futura dor de cabeça e a vida segue em suas filas.


É tanta fila que eu lembro da recente situação que eu vivi, com o senhor Aristides, meu vizinho de longa data e funcionário público aposentado. Seu A ou Tide como era conhecido,  morreu de covid, abandonado pelos filhos e netos e também pela ex-mulher. Seu Tide havia rompido com os 3 filhos por volta de 2017, quando decidiu informar que era gay, além de estar voltando ao mundo acadêmico,  para estudar Direito,  mesmo com sua idade considerada avançada para se dedicar aos estudos formais.


A raiva e a reprovação por parte dos filhos não vinha pelo opção sexual do pai mas sim pelo volta aos assentos escolares. Com o pretexto de economizar para investir em seu futuro o velho Tide teria cortado uma espécie de mesada que aqueles 3, apesar de marmanjos velhos, empregados e pais de família, costumavam endossar em seus bolsos ingratos, mesmo com as conhecidas histórias de negligência sofridas por parte daquele recluso velhinho.


Da ex-esposa a distância era bélica.  Seu A teria pego a digníssima trepando com um vizinho em plena festa junina, vestida de rainha do milho e tudo. Devidamente desquitados, mantinham uma protocolar amizade que sempre se estranhava quando se tratava de discutir o futuro dos filhos, o destino dos 3 principais do futebol pernambucano rumo ao panteão da primeira divisão ou sobre os 35 anos de casamento destruídos por ambas as partes envolvidas e de diversas formas.


Puto com esse negócio de fila para tudo,  até para ir pro céu ou para o Inferno, seu Aristides resolveu quebrar o protocolo e voltar para o Brasil. Depois de 3 dias de seu enterro ele decidiu voltar. O motivo? Não gostou da fila que encontrou lá por cima. Voltou pra sua velha casa, pegou a chave reserva escondida por trás da caqueira do portão da frente e, depois de dar um susto daquele em sua ex-mulher, que traia o atual marido com um outro vizinho,  seu A reocupou sua casa.


Chamaram a polícia, os bombeiros e a TV. Nada. A PM pensou que fosse trote, os bombeiros não quiseram se indispor com um morto que xingava tão alto ( a casa é dele, afinal. Se ele não está invadindo, não somos nós que iremos entrar nessa disputa com o lado de lá) e a imprensa,  por sua vez, não acreditou bem no relato. Em uma manhã de visita a minha mãe me conta toda a história.  No bairro só se falava disso. E o cheiro não deixava engano.


Seu A morava no fim da rua em uma cada de muro alto. O muro mais alto que se tinha por ali. Muro alto na favela significava dinheiro. Grana. Poder. Passava o recado que você queria ou tinha algo para esconder. Aristides gostava de mim e de meus irmãos. Sempre discreto, chamava um de nós para pequenos serviços.  Jogar o lixo, tirar as folhas secas da calha ou levar um de seus cachorros para tomar vacina contra a raiva. A gente ganhava uns trocados e ficava feliz. Naquela tarde tomei coragem e fui até a casa para tomar um susto ou satisfação.  Aristide tinha deixado todas as portas e janelas abertas, tinha convidado os vizinhos para pegar, cada um segundo sua necessidade, um item mas, agora, três dias depois, além da casa praticamente vazia, o cheiro não permitia muita conversa.


Seu Tide estava sentado ao lado de sua piscina vazia e tomava uma limonada forte,  perversa e sem açúcar.  Eu tinha colocado duas máscaras para garantir, mas não garanti nada. Pele meio esverdeada, as unhas caindo dos dedos, cercado por uma nuvem de moscas enquanto vermes caiam de seu corpo enquanto ele gesticulava com sua camisa social branca aberta até o umbigo.


Tu cria teus filhos, Bob, e eles fazem isso contigo.  Mesmo tendo me visto crescer ainda me confundia com um de meus irmãos.  Realmente era ele que estava ali e  não um demônio possuindo o corpo de meu ex vizinho.


Três filhos homem, três carrapatos, sanguessugas de nosso suado dinheirinho, enquanto a gente escuta o ditado: a gente morre e deixa tudo aí! Era melhor que fosse tudo fêmea.  Mulher pelo menos trata da gente quando a gente está doente. Pelo menos isso.  


Eu revirando os olhos. A cada frase, a cada vez que ele abria a boca, as duas fatias de bolo de cenoura que eu havia comido na casa de mãe ameaçavam ganhar o mundo. De repente, assim do nada, ele parou. Era como se alguém tivesse tirado uma pilha de um brinquedo. Parece que aquela estranha história tinha terminado. Aí seus olhos brancos cor de gelo olham em minha direção e piscam. Não tinha nada pra dizer.


Como é que foi lá do outro lado, seu Tide? O senhor estava no inferno ou no céu?

No inferno eu já estava meu querido.  Pra ser sincero, eu nunca gostei desse lugar. Nunca gostei de vocês.  E eu morri de covid, com esse governo de merda! Como é que alguém vai pro inferno depois de morrer na mão de um inferno desse de merda? No céu? Não.  Eu estava era numa fila. Se ele estava lá, não vi. Por isso eu decidi voltar. A gente passa um aperto por aqui pra, na hora de ir, ter que ficar numa fila do tamanho do mundo? Que se foda entendeu?


Depois de uma nova pausa ele me olha novamente.  Uma mosca enorme pousada em sua retina morta. A pausa ajudou. Deu pra soltar o ar que estava prendendo. Respirar era impraticável.  


Eu desisto, Bob. Pode ligar pra funerária para me levar de volta. Dessa vez eu vou e fico. Juro que não volto. Diga pra minha ex-mulher que naquele réveillon na praia em 82 eu comi a irmã dela. Mas não gostei. Pode chamar o pessoal do plano, avisar a funerária.  


Uma nova pausa. Dessa vez a situação estranha ficou por minha parte. De tanto segurar o ar o aroma da morte me venceu.  Vomitei as duas fatias de bolo de cenoura, as duas xícaras de café e parte do almoço.  O velho morto começou a rir. E ria alto. Enquanto ria uma coisa que era pulmão,  rim, pus ou um resto de almoço era expelido de seu corpo tomado pelos vermes. Ri também.  Aquele era o destino de todos nós: viver numa fila, morrer numa fila. Aguardar numa fila de banco para ser maltrato, agonizar numa fila do SUS para ouvir no pontinho que não tem nem dipirona,  amargar numa fila de cadeiras por quatro anos para entrar em outra fila de espera para pegar um diploma que te dá o direito de entrar em outra fila para aguardar uma vaga.


Liguei para a funerária.  De alguma forma eles aguardavam a resolução do caso. Trouxeram outro caixão para um defunto falando pelos cotovelos como um prisioneiro solto depois de meses na solitária. Dessa vez não houve enterro. Seu Aristides foi cremado no cemitério mais caro que ouvimos falar na rua. Ninguém foi convidado. A família queria evitar voltarem no assunto do defunto teimoso.

Ele me deixou um presente. Uns três meses depois chegou em meu endereço atual uma caixa contendo um livro e um bilhete.  O livro: uma rara primeira edição de Incidente em Antares do Érico Veríssimo. No bilhete a desculpa por todas as vezes que trocara os nomes de meus irmãos e eu. Era de propósito.  Na verdade ele gostava de nos confundir.  Velho procura prazeres em coisas pequenas para passar o tempo. Toda vez que eu pegar uma fila vou lembrar de seu Tide. O homem que foi e voltou pra nos dizer pra viver.

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