Grana...



O nome do morador daquela cobertura era Adalberto. 'Seu Aldo', como ficou conhecido por todos. Filho único,  solteiro, tinha herdado do pai, um também solteiro, uma pequena fortuna. Certa vez ele confessou ao Senhor Otávio,  nosso mais antigo porteiro, que seu pai tinha ganho uma bolada da antiga Sena, isso lá pelos idos dos anos 60, antes da Sena virar essa coisa toda que a gente vê por aí. Uma aposta por um bilhete que lhe prometia mudar a vida.  Solteiro, seu pai tratou de gastar e investir todo aquela renda. Investir em negócios não tão republicanos e gastar nas gandaias da vida. De uma dessas que seguem a gente pra onde quer que a gente já, nasceu seu único filho, que herdou, a contragosto, claro, toda aquela grana que, nos anos 60, podia se chamar de dinheiro vivo realmente.  


Seu Aldo não comprou casa. Preferiu ir morar em um dos históricos e grandes hotéis de Porto Alegre, cujo nome, claro, não vamos aqui mencionar para não fazer propaganda gratuita. Ele se apresentou na recepção,  com suas roupas simples, sua fala quase que inaudível e pediu o melhor quarto disponível. Pagou adiantado por três meses (estou aqui a negócios) em dinheiro vivo.


Seu Aldo se acordava de manhã cedo, fazia uma caminhada pela vizinhança,  tomava café da manhã junto aos outros clientes e depois saia, ninguém sabe bem pra onde, voltando no fim de tarde. Jantava, recolhia os jornais do dia e voltava para seus aposentos. Foi essa sua rotina nos últimos 27 anos aqui. Carregava consigo uma pequena agenda. Das empregadas que recolhiam seu lixo e arrumavam seu quarto só se tem notícias de poucas roupas, pacotes de doce, livros e revistas e alguns anúncios de shows, circos e teatros. Seu Otávio,  que morreu há exatos 4 anos,  chegou a dizer aos donos do hotel que na agenda ele guardava seu cotidiano, os filmes e as peças que gostaria de ir,  a programação da semana e sua extensa programação nos pontos culturais da cidade. Era exatamente isso que fazia aquele simpático senhor, que durante os 27 anos morando naquele edifício nunca esboçou raiva, nunca foi rude com quem quer que fosse, nunca foi visto embriagado ou trazendo alguém para seus aposentos. Um verdadeiro cavaleiro.


Perguntado,  já que a história foi capa de revista na cidade gaúcha,  seu Otávio afirmou que o amigo tinha uma ou outra namoradinha, quando lhe batia umas agonias da vida. Nada muito duradouro ou complicado. Levava as moças para algum restaurante caro, uma padaria de luxo ou numa cafeteira de seu convívio e desfrutava de sua companhia. Nada além disso. Ele não tinha prazer com o sexo oposto e nenhum outro sexo. O que lhe divertia era o cinema, coisa que ele fazia questão de fazer sozinho, introspectivo,  intenso. Só pra si. Quando era hora de rir alto, ria. Na hora de xingar o vilão ou comentar sobre o caminho que o enredo levava, o fazia baixinho,  para si. Acordava, fazia sua caminhada, tomava seu café da manhã,  ia para uma academia próxima ao hotel, desaparecia no mapa e depois, sempre com suas roupas simples,  sua cara alegre e familiar,  voltava. Agora, com uma certa idade, pedia chá na recepção,  onde olhava para as televisões espalhadas, as muitas notícias do dia e se recolhia, cedo.


Adalberto sumiu tem treze dias. Uma mancha apareceu em sua cabeça. Os cabelos agora brancos e ralos, davam brecha para uma careca cansada. A mancha que apareceu era inicialmente minúscula, depois foi crescendo, ganhando forma de mapa mundi. Ele começou a analisar, passou os dedos pela careca e em dia de muita chuva começou a arrancar seu coro cabeludo na frente de um espelho enorme que ficava na frente de sua cama.


Aquilo doeu. Doeu muito. Ele arrancando com os dedos a pele flácida, os restos de cabelo, os caminhos abertos pelas rugas. Por último ele arrancou todos os seus dentes, já velhos e cansados pelo tempo de uso. Tomou um banho, arrumou o quarto como de costume e ao se despedir da recepcionista,  deixou um pequeno bilhete de agradecimento.  O estranho, conta a moça,  agora com 13 anos naquela recepção,  era que o semblante do simpático senhor Adalberto, parecia mais jovial, seu sorriso mais branco e pleno, escondido por uma boina italiana que ele havia acabado de comprar outro dia. Depois daquela manhã nunca mais fora visto. 

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