Não abra a geladeira



   No final da Rua da Alegria, no 13° andar do edifício Quebrangulho, exatamente no último apartamento Margarete e Marta Maria moravam.  No número 302, no final do corredor, ao lado de uma caqueira vazia escrita sofrimento. Marta Maria e Margarete eram amigas de faculdade. Tinham se conhecido dois anos antes durante o estágio na universidade. Uma geógrafa, outra historiadora, ambas desempregadas, morando longe de casa, fazendo bicos infelizes e lutando para manterem seus sonhos de construir a vida longe de suas pequenas cidades. Ambas filhas únicas, haviam se tornado unha e carne, amigas inseparáveis, irmãs com laço bem maior que o sangue. Quinze dias as separavam, uma acometida pela doença, outra empenhada numa visita a sei antigo bairro para um enterro em família. Quinze dias. Aí o telefone de ambas tocam em um fim de tarde.

   Apesar do nome festivo, a Rua da Alegria agora é um lugar decadente. Antigamente havia uma quermesse a cada quinze dias, as crianças ocupavam aquela rua brincando bola, pipa, pião, pique esconde, as mães sorriam com suas cadeiras de praia e seus crochês nas portas das casas, um núcleo da PM afujentava os indivíduos indecisos e algumas nuvens paravam meio que combinado, naquela paraíso. Veio a crise, desempregos foram desfeitos e acabaram com a quermesse. O edifício Quebrangulho acabou virando uma espécie de maldição.

    Foi nessa época que as amigas decidiram alugar o AP 302, pagando um bom preço pelo aluguel. O telefone tocou avisando as meninas que, devido um acidente, o edifício estaria sem energia. 15 dias. Algumas roupas penduradas no varal improvisado na área de serviço, umas plantinhas para colocar água dia sim, dia não e um frango na geladeira. Inteiro. Teriam que combinar um retorno. Teriam que ver quem poderia ir até o apartamento resolver a situação, teriam que ligar pra Celpe xingando todo mundo por terem perdido R$37,50 em um frango inteiro agora agonizando sozinho numa geladeira sem eletricidade. Margarete doente. COVID. Pela segunda vez. Caberia a Maria Marta interromper o luto.

   O enterro de Tia Adélia seria lento. Como mandava a tradição da família, o membro mais velho vivo deveria fazer a reza ao defunto, antes de encomendar a alma para a eternidade. Pela lentidão da cerimônia Marta perderia a última lotação saída de Caicarinha pra Villa Bella. Dormiria na casa dos pais, ouviria a avó lhe falar de seu cabelo, questionar seu peso e como de costume falar do quanto era normal as jovens casarem cedo em seu tempo (aos 14 anos no caso da avó) mas se manter solteira em pleno Século  Vinte Um (um tempo perdido, segundo a velha). Vinte e sete anos; essa menina não vai casar não? E essa história de morar sozinha na capital, onde já se viu isso? E aquela ladainha seguiria madrugada inteira, junto com os comes e bebes, pois tem esse estranho costume de se comer bastante quando se tem enterro.




   De manhãzinha telefone toca. A área da internet meio que é trazida pelo vento naquelas bandas. A lotaçãozinha, a despedida, abraços apertados em todo mundo, um até logo para os primos, as sacolas de fruta, os bolos de milho… tudo alí separadinho. Rodoviária, passagem comprada, meia hora de espera, seis horas de viagem e chuva na chegada ao TIP. Não tem metrô mais. Pedir um UBER. Celular sem bateria. Gastou assistindo dois episódios de Grey'anatomy na vinda. Uns poucos prazeres que a vida lhe permitia.  O jeito foi tomar um táxi custando os olhos da cara. Meu Deus, quem ainda anda de táxi hoje em dia? Quem ainda 'toma' um táxi? Quem ainda se preocupa com as ordens de uma velha que vivia com a mente e o corpo ainda no início do século passado?

   Voltou o caminho todo de olho na rua, pensando no troco e no taxímetro. O motorista era um coroa. Não aceitava pix, não trabalhava com a maquininha e já saiu do TIP xingando quem aceitava andar de UBER e todos os IBERs do país. Pra ele, quem fazia UBER era ladrão. Desempregado. Vagabundo. A corrida já tinha comecado com a bandeira de R$5,59. Facada. E o coroa andava meio que no limite de 50km com a pista vazia. Uma merda. Sabe aquele ar que tem alguns taxistas, tipo, como se tivesse te fazendo um favor? A senhora mora longe, viu? Teve que dá duas voltas até achar a Rua da Alegria pois se recusou a ouvir a passageira e usar o GPS. &Era motorista fazia mais de 30 anos; não daria sua vez pras máquinas! Queria mandar o velho tomar no cu (e fez. Em seu pensamento pelo menos umas 3 vezes).

   A Rua da Alegria vazia. Meia noite e quinze. R$67 no táxi e uns quebradinhos. A Rua da Alegria totalmente escura e sem brilho. Nenhum policial no antigo postinho. Subir os treze andares de escada com uma bolsa de costas, várias sacolas e aquela mala pesada. Mantenha o portão fechado sempre! Dizia o cartaz logo na entrada. Cadê o porteiro? Dormindo por aí? Tomando uma bicada? Ainda tinha porteiro noturno no Quebrangulho? O elevador encontra-se em manutenção. Outro cartaz maravilhoso. Tudo que for fazer, faça sem fazer barulho! Proibido aborrecer os vizinhos! #foratemer. Seu Mário do 112 é corno! Era bom voltar pra casa. Com o celular sem bateria foi difícil não fazer um barulho ou outro entre as escadas.

    Enquanto pagava sua penitência por ter vindo ao mundo mais pobre do que devia, sentia uma estranha presença. Algo meio que a observava e entre brigas de casais, mulheres gemendo se pegando na escada logo do terceiro andar e duas topadas no escuro Marta Maria enxergava no final do corredor escuro o 302. Mal entrou, jogou as malas no chão, abriu as janelas para circular um ar, jogou uma água nas plantinhas e literalmente caiu no sofá, não antes de notar que, mesmo sem energia, a casa não estava tão ruim quanto ela esperava. Ajeitou um travesseiro velho de sua cama box comprada num brechó de móveis, botou a cabeça pro lado e apagou, com o rosto virado pra geladeira, desafio esse que seria encarado logo de manhã, ou lá pras onze horas, meio dia… a bendita hora que acordasse. Vocês já andaram na Princesa do Agreste do Sertão pra capital num ônibus executivo e sem ar-condicionado?

    Sonhou bons sonhos. Um homem da pele verde vinha a seu encontro, lhe tomava em seus ombros, lhe dava um beijo suave na testa e lhe deixava na casa já forrada e com os lençóis trocados. Ninguém merece babar num lençol já babado! Por volta do meio dia o calor do pequeno AP e uma certa dor no pescoço lhe acordavam. Teriam sido as bolsas, a dormida naquele sofá velho, a idade finalmente chegando, a menopausa? Ajeitou os óculos para poder ver o mundo com um certo otimismo. Iria precisar. Começava a notar um estranho cheiro vindo da geladeira. Lembrou do frango inteiro que tinha comprado quinze dias atrás, antes de receber a terrível notícia da morte da Tia Cotinha e que precisaria viajar. 

   O plano original era maratonar Grey's anatomy todinha, já que a amiga, doente, teria que esticar um pouco mais da estadia seja lá onde ela estivesse, que Marta não era muito de se meter na vida dos outros e a amiga também não era muito de contar. Agora tudo ia pro água abaixo. Nada de série para maratonar. Nada de sair nua pela casa ou só de camisola. Nada de talvez pedir uma pizza e torcer praquele 'negão do cavanhaque' fã do Raça Negra vir entregar. Sabia que ele era fã do Raça Negra porque dava pra ouvir pelo fone de ouvido dele sempre quando ele vinha fazer as entregas. As amigas já sabiam. Até apostas faziam. Ele cheirava a chiclete e ouvia Raça Negra em seu fone de ouvido. Elas só pediam pizza. Mesmo sabores. E o estabelecimento ficava praticamente duas quadras do Quebrangulho. Talvez, só dessa vez, ela tomasse coragem, pediriam umas cervejas junto com as pizzas e, se ele aparecesse, perguntaria na cara dura se ele gostaria de ficar. Agora era tudo por água abaixo. 

    Sem energia no prédio, sem ter como carregar o celular, sem água quente no chuveiro para encarar aquela descida dos treze andares para ir do outro lado da Rua da Alegria para ir na padaria. O problema era aquele cheiro, aquele cheiro tímido, escondido, envergonhado que parecia não querer se mostrar, mas que ela sabia que estava ali, assim que abrisse aquela porta da geladeira. Aquele cheiro que descia pelo chão, se arrastava pelos cantos da parede, subia pelo braço do sofá e se impregnava em suas roupas, se espalhando pelo ambiente, entrando pelas narinas de quem, desavisada, entrava naquele apartamento tomado pelo perfume da morte.

   Varreu a casa toda, desfez as malas, ajeitou o guarda roupa e evitou encarar a geladeira o dia inteiro. O cheiro, apesar de presente, não era assim tão forte. Parece que tudo ficaria bem enquanto tomava coragem para abrir aquela geladeira e ter que encarar o dinheiro que ele perdeu ali estragado. Borrifou um bom ar pelo apartamento, acendeu uns incensos e decidiu deixar a missa de 15 dias do frango morto para o outro dia logo de manhã. Havia dado um murro medonho, um grau naquela casa, como costumavam falar. Deitou novamente no sofá, com a cara para a geladeira, o desafio do outro dia.

    Mesmo sonho. Mesmo lugar. Mesma impressão que olhos estranhos lhe observava enquanto dormia. Acordou cedo dessa vez. Tava quase nova. Era mais ou menos umas cinco e quinze quando saiu de casa para caminhar. Sete horas já estava de volta. Antes passou na padaria, comprou o pão nosso de cada dia, deixou o celular pra carregar na Academia Linda, local que costumava frequentar e teria ligado de lá, do celular de uma amiga que encontrara para o serviço de emergência da CELPE, agora chamada de Neoenergia, que lhe garantia que tudo estaria resolvido o mais rápido possível e lhe agradecido pela ligação. Soou mentira mas ela estava disposta a acreditar. Voltou pra casa mas deixou a coragem de abrir a geladeira e limpar toda aquela sujeira deixada por um descuido de uma empresa que não tinha nem se quer a moral de cobrar pelo serviço que prestava.




   Quatro dias haviam se passado e nada da coragem pra ajeitar aquela obra de arte. Nem coragem nem luz. O descaso havia lhe feito aproximar novamente dos vizinhos, que também reclamavam jurando dessa vez assinar qualquer abaixou assinado contra a empresa fornecedora do serviço. O síndico que nem ousasse botar a cara naquele andar. Iria ouvir poucas e boas. Só a coragem para abrir a geladeira que não voltava. Quinze dias, vinte dias, um mês se passado e nada da energia voltar, e nada da coragem de abrir a geladeira e encarar aquela sujeirada toda, aquela podridão lá dentro. Reparou nos vizinhos. Silêncio. No descaso que tomava conta daqueles apartamentos, daquele condomínio, daquela rua sem graça, da amiga que não dava sinal de vida ou de melhora.      Exatamente um mês depois de sua volta pra capital Marta tomava coragem para abrir a geladeira. Duas máscaras na cara, um bom ar na mão direita, as janelas todas escancaradas e a grata surpresa: a geladeira estava limpinha. Parecia que recém abastecida e que ninguém teria feito uso daquele eletrodomésticos tão cobiçado. Será que ela estava doida? Ela tinha mesmo comprado uma galinha inteira antes de viajar para Caiçarinha da Penha pro enterro na família, ou será que depois dela ter viajado sua amiga Margarete teria voltado e arrumado tudo? Arrumar tudo? Não parecia coisa da amiga.

    Não sabia explicar. Foi fechar a geladeira e a luz voltou. De noite pediu uma pizza daquele mesmo sabor de sempre e se surpreendeu quando 'o negão do cavanhaque' foi entregar em pessoa, com o mesmo cheiro de chiclete e ouvindo Raça Negra a todo volume em seus fones de ouvido, não sabia como ele conseguia fazer todas as entregas, andando na pista com aquele barulho todo no ouvido. Parecia que tudo ia dar certo. Nem precisou lhe convidar para ficar. Ao vê-la o negão soltou logo um sorriso, foi perguntando pelo sumiço e relatando que estava sobrando pizzas desde que ela e sua amiga andaram desaparecidas. 'Onde está a amiga?' 'Só uma pizza?' 'E essas cervejas aqui, são pra acompanhar?'.

    Nem precisou de muita conversa. Foi logo agarrando o negão pela beca, jogou ele no tapete da sala, lhe deu uns beijos pelo pescoço, no queixo, como se estivesse procurando a origem daquele cheiro de chiclete impregnada na pele do entregador. Antes de lhe abrir o zíper da calça sentiu toda sua virilidade. O negão tava tão excitado, com tanto tesão que não deu nem pra tirar o capacete direito da cabeça. Bateu no chão, fez soada, enquanto ela subia entre as pernas deles procurando se encaixar como quem prova uma roupa nova naquelas cabines minúsculas das lojas, feitas pra impedir o roubo mas também a nossa paciência. 

    Treparam alí mesmo. Duas. Três vezes. Ela só o deixou respirar na hora de buscar as camisinhas no quarto e quando voltou o encontrou tão disposto quanto ela o havia deixado. Pegou ela pelos cabelos na volta, colocou contra a parede de costas e a fez gozar novamente, uma, duas vezes de novo. Quando ela estava praticamente jogando a toalha, lhe faltando o ar ele a leva de volta para o sofá e lhe chupa inteira, de quarto, antes de lhe penetrar novamente, deixando ela tão maluca a ponto de ter gozado novamente, dessa vez duas vezes seguidas, o tal do orgasmo múltiplo. Duas taças de vinho, toda a cerveja e a pizza degustada e ela agora sorria. 

   Achava que os orgasmos múltiplos era apenas uma lenda perdida numa canção do Caetano. Telefones trocados, despedidas feitas, caia novamente no sofá, agora parecendo um traste sorridente depois de uma noite maravilhosa de sexo gostoso e pago com juros. Fazia tempo, ela também sabia, que o negão estava de olho nela também. E que pizza gostosa aquela.

    Madrugada. Abre os olhos na base do sacrifício. O sono tava tão gostoso e reparador. Ela merecia. Enquanto coloca os óculos percebe a porta da geladeira semi aberta e um rastro estranho no chão em direção a ela. Agora um cheiro acre, podre, como duas mãos apertando tua garganta inundava todo o apartamento. E as janelas fechadas. Aquele cheiro de morte, aquele cheiro de podre, aquele cheiro de prazer e sexo substituído por algo tão forte que lhe impedia até o respirar, que lhe tapada o nariz, lhe fazia suar de agonia. Caiu. Escureceu a vista. Quando acordou (e não fazia ideia do tempo que havia passado ali) um ser estranho, pequeno, quase tocando os seus dedos. Não consigo se mexer, não consegue se erguer daquele sofá, não consegue se quer dizer qualquer coisa. A criatura sobe pelos seus pés, anda por sua canela, joelhos, chega na sua coxa. Agora consegue ver.  





    Os dias naquela casa foram vazios. Entre eles se passaram apenas o silêncio. Apenas o vento, sibilando por entre os blocos do condomínio Quebrangulho querendo entrar, contar novidades, trazer saudades. Naquele apartamento apenas a geladeira poderia dizer alguma coisa. E disse. Uma bandeja de ovos, meio quilo de tomate, treze batatas, duas cebolas médias, trezentas gramas de carne moída e uma galinha inteira haviam passado pela experiência dos dias trancados naquele caloroso aperto. A falta de grana para pagar a conta de energia, a falta de coragem para abrir de vez o eletrodomésticos e talvez um esquecimento tivesse reforçado e dado vida ao desleixo ou ao abandono. 

    A putrefação ali deu vez e vida aquela criatura. Uma gosma verde derretida havia se juntado no compartimento de verduras daquela Brastemp trabalhadora, bem intencionada, apesar do tempo de serviço. A gosma ver foi se juntando a uma baba do coro da galinha, no princípio amarelado, cinza, depois repleto de bolas de um pus amarronzado, estourando e dando vida a várias larvas, agora rastejando entre o caldo das verduras azedas e fermentadas. A gosma verde misturou-se com uma espécie de bolor que se formou na parte de baixo do congelador. Gosma se alimentando das larvas, larvas virando moscas, sendo devoradas pela nova mistura do frango, carne moída apodrecida e a baba amarelada daquilo que era o coro e o sangue da ave. Quinze dias depois de cortada a energia e uma espécie de criatura, não se sabe se morta, se viva, passou a se formar, juntando-se como que em protesto por aquela situação, afinal, também há vida entre o pus. 

    A criatura possuía três olhos, um braço, uma mão com três dedos, dentes, pescoço e cabelos. Dentes foram criados a partir dos ossos do frango, que emprestava para a criatura metade da cabeça entre as larvas e os tapurus que iam e viam da cabeça ao ventre daquele emaranhado de restos e dejetos.

   No dia em que Marta Maria regressou os ratos faziam a festa na porta da geladeira. Tentavam de toda forma invadir aquele tempo do asco. Como a dona do apartamento fez pouco caso, a guerra continuaria por mais algumas noites. As ratazanas e baratas haviam começado uma obra na traseira da geladeira. Aberto um buraco entre o motor da geladeira e a parede. Dezenas de ratos, gabirus, largadas, baratas e escorpiões sucumbiram diante da horrenda e mórbida criatura. Numa tentativa de invasão à geladeira, em uma madrugada chuvosa, aquele pequeno exército de ratos teria virado alimento do bestial ser. Um gato desavisados também fora apanhado ao tentar espiar tal movimentação naquela cozinha. 

   A dona, pode me perguntar o querido leitor, não notou tal condição, não reparou no cheiro impregnado em suas roupas, seus móveis, até na água que ela bebia? Não sentia. Ela e a podridão do apartamento agora era e agia como uma única coisa só apenas. Ela só (talvez) fingisse não notar para não ter que parar sua vida. Que diriam os vizinhos, caso a vissem parada, de máscara, colocando pra fora da casa tanta sujeira, mais do que duas sacolas além do costume? Melhor evitar. 'Esses vizinhos geralmente falam de mais', 'preocupam-se muito com a vida dos outros'. 

   A criatura agora sobe sobre a perna da jovem, ganhando tamanho e crescendo na medida em que fluídos e um espesso líquido saído da geladeira, arrastando pelo azulejo branco da sala. O cheiro de podre era tão forte que causou náuseas na jovem, que vomitou até àquilo que não tinha no estômago.


-Oi, sumida! Uma voz gutural, rouca, entrelaçada por uma respiração lenta e pavorosa misturou-se ao ambiente, escurecendo de vez a vista de Marta Maria. Uma dor de cabeça, a boca seca, um travo na garganta. Uma criatura parecida com uma barata, várias delas na verdade, de uma cor cinza esverdeada saída da improvável boca daquele bicho que surgira em sua frente. Marta acordara no mesmo sofá onde havia apagado, e não fazia ideia de quanto tempo teria dormido naquele provável pesadelo. Não era. De frente para o sofá de sua sala, uma TV ligada a todo volume. A criatura do inferno ocupava a poltrona que até aquela hora era considerada sua.

-Você ronca, Elizabeth! Qual seu nome mesmo? ( A mesma agonia, o mesmo asco, as mesmas sensações de anteriormente, mas já não tinha mais nada para expelir naquela hora).

-Meu nome é Marta Maria. Eu estou sonhando, não é? Pesadelo pior que esse eu não poderia ter! Conta aí quem fez esse?

-Vou lhe chamar de Elizabeth. Marta é um nome muito batido, muito cristão, muito redondinho.  Vai alí, Elizabeth.  Faz uma saladinha pra 'gente', pedi umas cervejas naquele aplicativo novo que eu sei que você tem e arruma essa casa que eu vou receber visita mais tarde pra assistir ao amistoso da Seleção.  


    Naquela noite uma multidão de ratazanas subiram os muitos degraus da Rua da Alegria, no 13° andar do edifício Quebrangulho, exatamente no último apartamento onde Margarete e Marta Maria moravam. No número 302, no final do corredor, ao lado de uma caqueira vazia escrita sofrimento, agora habitada por um rato grande e gordo, do tamanho de um cachorro, com o coro das costas caindo e um buraco no lugar de um dos olhos. Marta Maria já não mais existia. Não era mais um nome. Elizabeth acordava cedinho, fazia o café para aquele corpo cada vez mais apodrecido, servia aos seus novos inquilinos,  que cada vez mais se revezavam entre os já poucos espaços daquele apartamento agora imundo,  tomando pelas baratas e pelo mofo.

    'Arruma essa casa, Elizabeth!' era seu novo bom dia. E por arrumar a casa significava trazer mais comida. E aquele ser só fazia crescer cada vez mais, apodrecendo a velha poltrona da sala. Quando a comida acabou (e ele só comida salada inicialmente) os restos do frango da geladeira passou a comer os ratos inquilinos.  Depois as plantas. Os vizinhos. Os entregadores de aplicativos que ousavam se aventurar fazer entrega naquele endereço maldito. Dizem que sentiram falta de Marta Maria, agora Elizabeth.  Passou algumas décadas assim, numa  serventia severa. Passou a viver para o monstro de sua geladeira.  

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