Vacina

 


Por volta das oito e meia começa os trabalhos do dia em mais uma campanha de vacina contra o Covid-19. Tudo montado, equipe aposta, tudo pronto para mais um dia nesse caos chamado pandemia. No fim da tarde, o enfermeiro não vai conseguir nem passar manteiga no pão de tantos braços que ele espetou nesse que é mais um dia de exploração aos trabalhadores da saúde (ou você acreditou nesse papo de priorizar os trabalhadores da saúde como recompensa?). Por volta das dez e meia, fila caminhando no ritmo de uma valsa triste, uma galega aparece. Vestida feito madame, óculos escuros parecendo um capacete, marido e filho puxados pela mão e uma impaciência evidente.

A galega chamou atenção de cara. Parecia estar no endereço errado naquela manhã. Em um ar medidamente superior ela se desloca para frente da fila, balbucia algumas palavras com o vigilante que organiza a fila e, literalmente, exige passar na frente. Furar fila.  Em pouco tempo, como se sua presença já não fosse motivo suficiente, as idosas da segunda dose, os jovens esperançosos pela Self com as “#” para as redes sociais e os familiares, os acompanhantes, os vigilantes, os enfermeiros do local, todos passam a transmitir o vírus da solidariedade espontânea contra a loira fantasia de rica. Sim. Ela deveria ser uma verdadeira lisa. Deixou o carro em casa, colocou um casaco naquele calor de rachar e nem se lembrou que a regra do “não dar bom dia quando chega” faz parte da etiqueta do rico, não só em dia de vacina. Solidariedade com rico só funciona em época de Natal e definitivamente não sobe de escada.

Mas a galera queria mesmo furar a fila da vacina. Ela achava que tinha que ser vacinada naquela hora que chegou pelo simples fato de (também) ter agendado seu dia. “Meu querido, dê licença, onde está o chefe desse local?”. O vigilante (que deveria se chamar Jó) aponta para uma das enfermeiras na mesa da frente. Novamente um sussurro ao pé do ouvido. A minha senha era a 56 e o número 23 era quem estava sendo chamado naquela sexta feira. Sim. Há uma magia má nas sextas que tornam esse dia mais lento que os outros e consumidos com moderação de abstêmio em véspera de natal com a família. A loira, indignada, pega a ficha de número 112. Procura uma cadeira vazia embaixo daquela tenta fantasiada de estágio para o inferno, mas não encontra. Não há. Talvez tudo tenha dado errado pra ela. Não sei. Sei que ela sai fumaçando e vai pro fim da fila. Com olhos atentos, risos são ouvidos. Piadas com a loira que parecia a patroa de uma jovem que estava ao meu lado.

Chega minha vez, tomo minha vacina, tão rápido que nem parece que o pobre coitado do enfermeiro espetou o passaporte para o futuro em meu braço. Vacina no braço, comida no prato, fora bolsonaro. Volta pra casa de boa e mais leve. A pobre loira fantasia de rica deve ter saído depois do meio dia. Deu até uma vontade de ficar lá, só olhando ela esperar indignada. Não quero julgar. A cara dela de negacionista pró-governo estava meio espantada. Sei lá. É como se junto do imunizante a gente recebesse uma dose também de esperança, que nos permitia voltar a ter sentimentos pequenos como querer lascar a burguesia, querer que o povo pobre pare de morrer, querer mudar o mundo ou ver a elite (mesmo que falsificada) ir pro fim da fila pelo menos uma vez.    

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