Um só guarda chuva pra uma família. . .

 




Terça era dia de ir jogar conversa fora na rua. Não sei bem até hoje do motivo da escolha do dia. Mesmo assim, toda terça de noite a gente repetia um ritual bem besta, dessas coisas que menino costuma fazer: Everton morava mais longe. Era dever dele se arrumar mais cedo pra iniciar a peregrinação nas casas. Digamos que a gente entrava na escola por volta das 13hrs e 15min. Na maioria dos dias a gente já estava sem aula lá pelas 14hrs. Se na fosse terça a gente fazia hora. Juntava uns trocados. Comprava lanche. Ficava de conversa na rua, a depender do filme da Sessão da Tarde. “fazer o que mesmo em casa?”. Terça, não. Terça a gente não passava das 16hrs. E era de Everton a missão de passar na minha casa, pra depois a gente passar na casa de Peu (Jessé), pra encontrar Edeilson (Hominho) no playtime (birosca) do jeito que a gente deixou, pra daí, juntos, enfrentarmos a avó ranzinha de Bruno (vagabruno). Toda essa logística para irmos no ‘centro’, comer umas batatinhas, olhar as figuras que passavam e voltar pra casa antes das 22hrs. Como eu falei, coisa de “tabacudo”.

Mas a verdade é que não há melhor lugar, melhor maneira de conhecer as pessoas do que escolher estrategicamente um posto para se observar as ruas. Na correria das ruas é que se vive e vê o pulsar da vida, o cuidar do bairro, o olhar, ainda que discreto daqueles que sabem de sua vida melhor que você mesmo. E lá estávamos nós. Não para olhar o alheio. Isso não importava. Não importa muito quando se tem entre 15 e 18 anos. A gente queria mesmo era sair de casa, tomar vento, como naquele poema do Mário Quintana sobre o adolescente. Naquele banco de praça a gente observava o mundo. A velocidade dos carros passando poderia medir a angustia de quem dirigia, a insignificância dos que passavam, a insignificância de quem estava do lado de cá. Ali passavam os carros, as horas e o tédio, queimando feito vela num dia sem vento. E a gente gostava.

Mas a lembrança que me vem daqueles dias foi de uma noite de chuva repentina. Numa parada de ônibus abandonada e esquecida pelas autoridades um pai de família espera sozinho, com um só guarda chuva velho a chegada de alguém. A chuva engrossando, nós olhando pra ele como um festival de perguntas sem respostas e ele se molhando, sem abrigo, mas sem abrir o guarda chuva. Será que ele pensava que a gente ia lhe assaltar? Meu deus, só hoje que me veio esse pensamento na mente.

Chega o ônibus e aumenta a chuva. Agora é torrencial, digna daquelas que deixam as pessoas nos morros sem conseguir dormir, sem paciência para o Big Brother ou o pronunciamento do presidente antes do Jornal Nacional. Amanhã, novas estatísticas para alimentar a sede de sangue dos jornais. Hoje uma família de seis se espremendo pra poder ir pra casa. Pai, mãe, dois casais de crianças. Antes de partir, um ‘boa noite’. Não era medo. Era vergonha. Um pai de família com seu guarda chuva velho, todo remendado e ainda assim com furos ainda mantém seu orgulho.



(2006)

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