Ele tem seis anos, um único par de sapatos e está quase acostumado a viver com o muito pouco que tem. Já não reclama, mesmo quando pode. Esse “Quase” é de quase mesmo, já que não dá pra aceitar certas coisas como normais ou maravilhosas. Ele tem seis anos e já não acredita mais em quase nada que os outros dizem. Está revoltado com o aceitar calado de todos, o reclamar baixinho, o não fazer nada de novo. Não dá pra aceitar calado, fingindo que somos iguais aos passarinhos.
Ele tem seis anos e já repara bem no mundo a seu redor. Olha as ruas e as praças, as vilas e as filas, as pessoas que passam e que nunca voltam, a guerra logo ali ao lado, as mentiras que se espalham e se multiplicam na TV todos os dias. Ele costuma sair com o pai, senhor de idade, ainda desempregado e viúvo, na procura de emprego, saída ou futuro. As coisas são um pouco mais difíceis longe das luzes da novela das seis ou das sete. Seu pai insiste que ele o chame apenas pelo primeiro nome; nada de pai, “painho”, muito menos senhor. Insiste para que ele observe tudo e de tudo. Tudo que se move, pois “tudo que move é sagrado', dizia seu pai, que aprendeu essa lição com um outro pai, o” pai mais velho “, nada de vovô”.
“O que mede um homem é a sua experiência adquirida no dia a dia da labuta da vida. A vida é recheada de dificuldades que não criamos; cabe a nós não aceitar essa situação de mão beijada”. Lições de seu velho que ficaram guardadas.
Ele tem seis anos e já carrega um mundo inteiro em suas costas, mesmo ainda sendo uma criança. Talvez não tenha tanta condição para analisar e compreender o tamanho de todo seu sofrimento. Acho que ele nem recorda daquele dia, onde, sem querer, ele perguntou a seu pai “por que ele só tinha um único par de sapatos”. “O menino da TV mostra um guarda-roupa lotado deles!” Talvez ele nem recorde esse dia. “Por que pai, se ele só tem dois pés, como eu?” Talvez ele nem recorde: os olhos do pai cheios d'água, o nó na garganta, a resposta que não veio... “Ele só tem seis anos”.
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