Tem esse negócio de eleger para si o melhor ano de sua vida. Li em algum lugar. Fosse meu caso, escolheria o ano de 2004, ano em que eu mais trabalhei, precisei tomar decisões difíceis e recordações que me trazem até os dias de hoje. É cinema, música, arte, poesia, escrita. Amigos e amizades que fiz, mantive e site teu até hoje, algumas que já se foram, outras que não mais vejo, todas ali, em um lugar saudável e bem quisto da memória.
Nesse ano lembro de um CD que ganhei de minha mãe, que ela, já cansada das batalhas da vida, não recordou após assistirmos juntos a triste reportagem do jornal informando sobre a morte do Lô Borges. Era fim de ano e ela me liga para dizer que estava em pleno shopping, de frente com uma grande promoção de CDs promovida por uma dessas grandes redes de loja que tem por todo Brasil. Pode parecer simples, mas CD era coisa cara e, naqueles tempos, era assim que se consumia arte: individualizada, fisicamente e artesanal.
Quem tinha a mídia, tinha. Eu estava no trabalho mas aquela informação de minha mãe parecia promissora. Naquele dia ela me comprou dois DCs do Djavan: Novena, de 1994, simplesmente o melhor disco do alagoano e Vaidade, que tinha sido lançado naquele ano e era trilha de novela da Globo. No pacote também tinha um disco duplo do Beto Guedes, da coleção Bis. Era uma coletânea com dois trabalhos de cada artista pelo preço de um, além de ter um padrão bem popular com os títulos em verde e branco. Eu não tinha nenhum disco do Beto Guedes, tamanha a dificuldade de achar.
Depois de passar pra minha mãe as recomendações do que comprar pra mim, ela me liga novamente. É que tinha um CD lá custando R$6 00, também de uma coleção e que talvez merecesse minha observação. Um CD podia custar uns vinte contos, e, acredite, isso era dinheiro. Um gás de cozinha custava uns R$30, um CD recém-lançado uns 25 ou 30 contos e o salário mínimo em 2004 era de R$260.
Por R$6,00 um CD? Pra mim aquilo era festa. O mais engraçado foi que eu não conhecia o artista, apenas de ouvir falar. Pra mim, Lô Borges era apenas o parceiro de Clube da Esquina do Milton. A única música que eu conhecia dele era Paisagem da Janela, que tocava vez em quando na Nova Brasil FM, 94,3.
Quando cheguei em casa, tratei de colocar em prática a hierarquia. Ouvi primeiro o lançamento do Djavan. Danadinho ele. Dois Hits para agradar os patrões e, de resto, um grande disco de samba. Beto Guedes era mesmo tudo aquilo que eu já conhecia, e ia além. Quatro, Luz e Mistério e Canção do novo mundo estão entre as coisas mais lindas que eu li, ouvi, imaginei até hoje. Isso sem precisar citar o óbvio: naqueles dois CDs tinham Amor de Índio, Feira Moderna, Roupa Nova, entre outras.
Mas foi aquele CD do Lô Borges que me pegou analfabeto, exposto e desprevenido. Chamado Retratos, o disco era mais uma coletânea dessas, bem safadas, feitas para dar muita grana para as gravadoras na época. O lance era um só: você pegava dois ou três discos do artista, colocava umas músicas misturadas e enchia o bolso de dinheiro. Eu duvido que algum artista ficava com o lucro daquilo ali. E aquele ‘retrato’ era para mim muito desconhecido.
Na prática, as músicas daquele disco orbitavam entre um show gravado ao vivo, que tinha sido lançado só no Japão. E a grande maioria daqueles sons eu não fazia ideia que existiam ainda. Um girassol da cor de seu cabelo abria o disco, que tinha ainda versões ao vivo para Trem de doido, Sonho Real e Para Lenon e MacCartney com o Paulo Ricardo cantando. Mas nada superava Canção Postal, a síntese das viagens lisérgicas sonoras e melódicas de Lô e seu violão. O Beto Guedes ficou escanteado, mesmo com seu álbum duplo de capa verde e branca.
Lô Borges ensinou ao país a fazer poesia, me ensinou a escrever e ter sentimentos. Lô foi a força pulsando do Clube da Esquina em todo seu auge e plenitude. Aí tô eu na casa de mãe, tomando um café de tarde, olhando minha filha mais nova brincando no sofá e recordando essas histórias. Quanta tristeza numa despedida rápida, de supetão e discreta feito costuma ser todo bom mineirinho.
Eu tinha entre 16 e 17 anos e podo dizer que, daquele CD em diante, nunca deixe de ouvir, ver e ‘consultar’ Mestre Lô, seja para qualquer ocasião ou ordem do dia. Agora, só esse estranho silêncio na rua. E ele ainda estava produzindo. Não parava aquele mineiro. Escuto mais uma vez o seu ontológico disco do tênis, enquanto escrevo essas linhas e procuro ressignificar, não sei se inutilmente, suas letras e melodias. Hoje ficamos tristes certamente. Amanhã talvez menos. Mas seguiremos com tuas músicas entranhadas em nossa pele.

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