Tornô ( ou, 'eu quero mesmo é que se lasque)




Esses dias fui até uma igreja para um culto de ação em graças ofertada por uma amiga, após ter conseguido, segundo a sua crença, devida vênia divina.

Fazia muito tempo que eu não frequentava semelhante ambiente. Admito que fique um pouco encabulado. Enquanto cantava os primeiros hinos, fiquei, a pretexto de achar um lugar pra sentar, na janela. Do meu lado, um senhor, todo paletozado. E como não tinha ninguém do lado de fora, achei melhor chamar o amigo comigo, até para não entrar sozinho. A resposta me chamou atenção:

-Não posso entrar na casa Deus, meu irmão. Eu não estou limpo. Ontem mesmo eu cometi pecado.

O irmão estava com um paletó cor de vinho, uma bíblia enorme na mão e não me aparentava ser uma daquelas figuras que geralmente são atraídas para as igrejas em dia de culto, alguns fazendo até a festa do pregador sem assunto. Eu fui criado na igreja. 

Como diz um ditado gospel bem antigo, numa época em que esse termo nem era empregado aqui no Brasil, "eu só não nasci dentro da igreja porque no dia não tinha culto". 

Na minha época, a palavra gospel ainda era vista como coisa do tinhoso. Hoje, não sei como está. Como disse, fazia muito tempo que eu não frequentava o ambiente religioso. Mas eu queria entrar. E não queria entrar sozinho. Busquei na minha memória o pouco do evangeliquês que ainda me restava, e tentei convencer o irmão do paletó cor de vinho.

-Vamo entrar, irmão. Se o senhor não está limpo, veio a casa certa.

Entramos. Sentamos num banco atrás do coral. No púlpito, um irmão declamava alguma passagem tirada do livro de Primeiro Samuel, aquela passagem clássica que o leitor, ou vai sacar na hora, se também é ou foi um frequentador assíduo de cultos de ação em graças, ou vai cutucar no Google provocado por esse cronista anunciador de boas novas.

 Nesse momento algo me interrompeu. Disposto ao lado estavam os bancos destinados à mocidade da igreja. Uma jovem, que talvez devesse conhecer o irmão do paletó cor de vinho que entrou comigo, começou a ironizar a demora dele no culto. A resposta dele foi imediata:

-Preste atenção no culto, irmã. Você viu a mensagem que o irmão acabou de falar? Você viu a passagem bíblica que ele leu? Viu qual foi o livro que ele leu? Me diga qual foi.

A moça ficou sem graça. Ao redor, como se todos conhecendo a situação envolvendo aqueles dois, ignoraram fazendo aquela cara de pires de porcelana na hora do chá da tarde na casa de um pobre. O culto seguia. Foi aí que uma coisa me chamou atenção após aquela lição bíblica do irmão do paletó cor de vinho. 

Ao lado daquela moça tinham três outras jovens, não uma, três, usando tornozeleira eletrônica. Uma delas toda arrumadinha, de vestido branco, com uma bíblia enorme no colo, com uma espécie de lençol branco cobrindo o artefato em sua canela fina. As três moças não deveriam ter nem 25 anos, todas. Ali, com o perdão pelo momento, mas eu julguei. Eu tive uma crise, uma agonia, que se eu não seguro a vontade de rir daquela situação, eu iria passar por um vexame tão grande, que não seria possível ser visto como outra coisa, se não o assunto do pregador desavisado.

Me controlei. Não queria ter que me levantar para ir até o sanitário. As três moças cantavam, oravam, soltavam seus glórias e aleluias e, com o devido respeito ao leitor, não me pareciam ter a cara de quem merecia estar presa com uma tornozeleira eletrônica bem no meio de um culto daquele. Mas, "em tudo dai graças". Se você ficou na curiosidade, saiba que eu mais ainda. 

Não perguntei. O culto seguiu sua programação, o preletor falou mais de política do que de jesus e a bíblia virou só um acessório para justificar o discurso de ódio pregado, justamente num dia de ação de graças. Quase me passou batido quando ele encerrou seu monólogo dizendo que "deveríamos orar pela paz de Israel e contra os inimigos de Deus". 

Não vou nem entrar na polêmica interpretação que certos cultos religiosos fazem sobre esse país que, na desculpa da fé, tem matado crianças, mulheres e idosos, seja de fome ou de bala.

Termina o culto e eu fico esperando para parabenizar os amigos de longa data pelo convite. As três moças passam por mim, com seus adornos. Nessa hora eu, ateu convicto e disperso, tive que abrir uma exceção e pedir perdão. Estava no lugar correto. Voltei rindo pra casa o caminho todinho.


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