Gil Vicente (1465-1536) foi um poeta e dramaturgo e é considerado o pai do Teatro em Portugal. O trabalho dele conseguiu refletir a sociedade da época, que passava pela crise do feudalismo na chamada Idade Média e o surgimento da burguesia e a transição para o capitalismo, período que ficou conhecido como Renascimento.
Anterior a Camões, Vicente se consagrou por fazer uma arte crítica aos poderosos e voltada para o povo, o que o consagrou como um dos expoentes da cultura popular portuguesa. É dele a expressão latina tida como a essência do humor e da sátira: “Ridendo Castigat Mores” ou rindo se corrige os costumes.
Quando falamos sobre humor e sociedade, especialmente no Brasil, temos que lembrar de alguns nomes, hoje consagrados, mas que foram perseguidos, censurados, processados, presos e até torturados pelo regime militar brasileiro como o Barão de Itararé (1895-1971), Grande Otelo (1915-1993), Chico Anysio (1931-2012), Ary Toledo (1937-2024), Juca Chaves (1938-2023), Jô Soares (1938-2022) e tantos outros. Rir dos poderosos muitas vezes pode ser algo perigoso e considerado até subversivo. Querem nos tirar até o direito ao sorriso. Quem não lembra do caso emblemático do Pasquim (1969-1991), o Jornal que chegou a vender em seu auge mais de 200 mil exemplares por semana, mesmo sofrendo todo tipo de pressão por parte dos órgãos de imprensa e da censura do fascista regime militar brasileiro.
Visto muitas vezes (até pela esquerda) como algo menor e sem muita importância, o humor sempre foi uma trincheira de luta e de resistência contra a tirania, a repressão e as adversidades da vida social. Se Aristóteles considerou em sua Poética a comédia como algo secundário e menor em relação as artes e a realidade, no dia a dia o povo fez do riso uma forma de sobreviver e enfrentar uma realidade muitas tão dura.
Foi assim no tempo de Gil Vicente e se apresenta hoje, quando vemos a realidade como a conhecemos entrar em completo fracasso. O sistema capitalista já não corresponde aos mínimos anseios humanos e o humor, nesse sentido é um campo onde se reproduzir a ideologia vigente e também se faz luta política.
E se em O Nome da Rosa, livro de 1980 do italiano Umberto Eco (1932-2016) o riso é posto como algo proibido, é nessa sociedade atual em que vivemos, notadamente marcada pela velocidade e difusão de informações pela internet e as chamadas redes sociais, que o sorrir e o entretenimento promovido pela indústria do riso é também (sempre foi) um vasto campo de disputa política e expressão da luta de classes.
Popularizado nos EUA na década de 60, o Stand up (Comédia em pé) se caracterizou pelo uso de pouco ou nenhum cenário e um comediante trazendo temas da atualidade para dialogar diretamente com o público, o que rompe com o formato mais sisudo e formal do teatro tradicional. As origens vem de muito longe, tendo inclusive nomes como Mark Twain (1835-1910) sendo um dos percursores dessa modalidade artística.
Calcada no teatro de revista e entretenimento (o Vaudeville) a comédia de cara limpa se popularizou chegando aqui no Brasil nos anos 60, com Chico Anysio e Jô Soares como exemplos, mas ganhando notoriedade especialmente no início da década de 2000 pra cá.
Usando a desculpa da liberdade de expressão e contra qualquer tipo de censura, comediantes de extrema direita tornaram-se referência, sobretudo nas redes sociais, alguns chegando a possuir milhões de seguidores nas redes, alem de se tornarem empresários milionários no processo.
Fazendo piadas racistas, sexistas e homofóbicas mas passando pano para a extrema direita alguns humoristas não tardaram a de posicionar ao lado do golpe de 2016, defende o governo ilegítimo de Michel Temer e do Bolsonaro e trabalhar para empresários financiadores do golpe de 08 de janeiro.
Por outro lado, com a disposição de se contrapor a esse discurso de ausência de política, o que por aí só já é perigoso, artistas como João Pimenta, Jhordan Matheus, Yuri Marçal, Daniel Duncan entre outros, tem se destacado por fazer um humor sobre racismo, violência policial e uma reflexão sobre questões do cotidiano, trazendo um olhar crítico sobre a nossa sociedade, o que não poderia deixar de refletir também sobre os últimos governos que tivemos, a hipocrisia da chamada extrema direita bem como situações que de tão absurdas, merecem passar pelo crivo do humor, transformando em sorriso certos comportamentos e atitudes, como reforçou certa vez Gregorio Duvivier, “graça mesmo é rir do opressor, não do oprimido” (essa, que é uma citação de outro grupo de humor muito importante, e que era tido até outro dia como Apolitico, o Monty Python)
E é essa a essência do trabalho de Thiago Santineli, humorista que desde 2017 vem se destacando no Brasil por ter se posicionado contra o fascismo, o pensamento anti científico e a mau uso da religião. Se Gil Vicente em seu “auto da barca do inferno” usou o discurso religioso para denunciar a hipocrisia da sociedade portuguesa de sua época, Santineli usa sua experiência pessoal religiosa para desconstruir de modo muito inteligente certas posturas religiosas muito usadas hoje para aprisionar, extorquir e lesar milhares de pessoas em nosso país.
Em novembro de 2024 Caruaru e Recife receberam o show de Stand up do humorista e podemos ver o quanto que é importante artistas como ele fazer uma arte sem precisar usar o discurso da neutralidade ou tentar fugir de certos temas para não desagradar ou perder público. Pelo contrário, Santineli tem feito um enfrentamento ao fascismo por meio da comédia e utilizando suas redes sociais para denunciar o fundamentalismo religioso, o que lhe tem rendido, como era de se esperar, campanhas de difamação nas redes e ameaças por parte da extrema direita.
Filiado a Unidade Popular, em suas apresentações ele faz questão de se apresentar se definindo cono “ex-comediante e agora militante”, algo que reforça a necessidade do público não apenas se indignar (e sorrir) da nossa realidade mas também transformá-la, ou seja, a comédia que não fica apenas no entretenimento.
Em tempos tão difíceis, sorrir, como cantou o maior de todos os comediantes Charlie Chaplin (1889-1977) ainda é algo que os poderosos não conseguiram nos tirar, apesar e tanta dor que vemos nesse mundo. Sorrir ainda é um campo a ser disputado em nosso dia a dia e também um reforço de esperança e humanidade, além de uma ferramenta de luta que não deve ser subestimada.
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