Necessidades...





Tem uma música do Belchior em que ele conta (canta) estar apaixonado por uma . . . geladeira. Sim. Houve um tempo em que tínhamos necessidades reais e as que nos eram impostas. Vai casar quando, fulana? E o filho é pra quando? Você casou, tem que trocar de carro agora, né? A menina nem chegava aos 18 e já tinha uma agenda pra vida até os trinta, incluindo casar com alguém duvidosamente encaminhado na vida por ter uma carteira de trabalho rabiscada, garantindo um salário mínimo a cada começo de mês. Minha mãe já tinha quatro filhos aos vinte e três anos. Não tem como ser feliz desse jeito. Ainda mais sem uma geladeira. 

Depois da geladeira veio o fogão elétrico, o microondas, a máquina de lavar roupa e agora um ar-condicionado. É tanto calor nesse mundo ultimamente que a pessoa nem sonha. Beba coca cola. Compre batom. Diga não às drogas. Aceite Jesus como seu salvador. . . Antes haviam alguns luxos. Hoje se trata de simplesmente sobrevivência. 

Nos anos 90 tinha uma única casa de primeiro andar em todo nosso bairro. Lembro bem. O dono era um advogado e sua filha não falava com quase ninguém da escola. Ela só frequentava aquele ambiente por ser o mais perto de sua casa. Aliás, parecia mais que era um tipo de castigo para ela. Casou jovem. Teve uns três filhos e não seguiu a carreira do pai. Infelizmente. Que destino triste. 

Voltemos para o ar-condicionado. Compramos o bendito. O cartão de crédito é uma navalha, de fato, seu Cazuza. E eu, que nem do Belchior gosto, finalmente entendi aquilo que ele sentiu ao falar sobre estar pós-modernicamente apaixonado pela sua escrava branca. Dividimos em suaves parcelas, fizemos contas, anotamos o quanto iríamos precisar emagrecer, cortar custos e luxos (esses cada vez mais poucos) para poder… dormir. Eu ia dizer sobreviver. 

Para pagar o bendito ar teremos que trabalhar mais, obviamente. E o ar é só pra gente dormir, literalmente. Chegar em casa, fazer o jantar, encurtar o sono e tentar dormir sem ter pesadelos com a casa pegando fogo ou com os boletos batendo em nossa porta enquanto mais um ventilador ameaça entrar de greve. 

No final das contas o Belchior tinha mesmo razão. O delírio é a experiência com coisas reais. É ficar preso em plena Conde da Boa Vista, olhar pela janela e avistar camelos andando tomando limonada numa jarra enquanto ajeitam seus óculos escuros. Isso às oito e meia da manhã. 

Compramos o ar e ele veio com um defeito no motor. Tivemos que pedir uma troca. Mas o aparelho ficou lá, no quarto, prontinho para o serviço feito apartamento de namorado quando vai receber o primeiro jantar. Parece loucura, mas só de olhar pro bendito aparelho ali, pendurado, com os braços abertos dizendo vinde a mim os sobrecarregados aquilo fez baixar o frio. Não sei se. Mas que deu uma impressão, deu. . . 


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