Era um sábado, quase cinco da tarde de uma véspera de feriado na segunda e eu agora me perguntava que danado estava fazendo, inventando de fazer compras naquele dia. Aquilo era uma guerra e guerras costumam ser baixas, ter baixas e inspirar obras.
A fila para o caixa rápido estava parecendo uma antiga vizinha nossa, que, apesar de se chamar Linda, não conseguia enganar muito bem. Tinha pra mais de trinta pessoas esperando impaciente na fila para o caixa rápido. E fila, seja onde for, costuma tirar nossa paciência para dançar. Uma senhora idosa, na casa dos oitenta sem dúvida, se encaixa no último lugar da fila. Dona Josi.
O estranho é que ela trazia em mãos duas sacolas com a marca daquele supermercado. Dona Josi também se negou passar na frente das outras pessoas ou se dirigir ao caixa preferencial. Quando o rapaz do microfone, que atende por esse nome justamente por passar o dia tendo que ser engraçado ou recitando versículo bíblico que ele não acredita, pediu pra deixarem a senhorinha passar ouviu um sonoro eu não estou morta ainda, querido, e ficou calado. Ainda soltou um eu podia passar sem essa, nera? Era mesmo sem graça ele.
Dona Josi não queria passar na frente. Todo mundo reparou naquela altitude mas, como era de costume, não houve muito caso. Era só uma velha que não queria usar seu direito de ser velha. E todos voltaram para suas listas de compras, maquinações para o feriado e seus devidos etcs.
Poucas pessoas repararam que aquele era um dia, talvez não tão bom, para treinarem mais seis novos caixas. Poucos notaram que aquele supermercado tinha feito uma enorme reforma em sua estrutura, aberto novas alas, tinha inaugurado uma espécie de restaurante e, mesmo com uma de suas filiais tendo pegado fogo em plena pandemia, as boas novas pareciam fazer fila também para o bom sentido.
Dona Josi na fila. E a fila parecia quase não andar. Eu estava quase desistindo de levar o creme de leite, pão de forma, uma lâmpada de Led para o quarto das meninas e o trigo para o bolo do feriadão. A demora fez a senhora Josi ser alvo da impaciência alheia. Fosse a senhora eu já estaria lá na frente agorinha. Deus me livre ter que ficar aqui nessa fila mais meia hora.
Quanta ironia essa vida. Era gente reclamando da fila dentro do supermercado, era gente reclamando da vida do lado de fora do mesmo mercadinho, gente sem emprego e sem renda, com filho pequeno e sem esperança, com auxílio emergencial mas ainda morrendo à míngua, de fome e de raiva no país onde pastores traficam drogas aos kilos mas não poupados todo dia. Nada consta. A denúncia aparece, gera revolta nas redes, engajamento, likes, duas oh três curtidas e só. Apenas a fila do SUS, a fila do Bolsa Família, as filas do sopão continuam e parecem eternas, meu Deus.
Quase uma hora e meia Dona Josi é atendida. Ela estava três pessoas a minha frente. Tinha voltado para a fila pois queria devolver trinta reais de troco que havia recebido por algum funcionário no caixa rápido mas não tinha reparado no rosto só moço ou da moça naquele momento. Resumindo, na pressa, ela não tinha conferido o troco. Temia que alguém tivesse que pagar do bolso por causa dela.
A mim só restou reparar no ocorrido. Reparar no rosto corado da moça ao ver tal atitude e nos olhos cheio de lágrimas secados rapidamente. Era preciso voltar ao trabalho rapidamente. Aquela fila não seria vencida sozinha. A mim só restou observar tal fato e voltar pra casa mais leve, reparando e pensando nos pequenos detalhes encontrados no meio do caminho.
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