Aquilo que te leva para um outro lado...

 



O ônibus


 A passagem para aquela viagem quase não foi comprada. O céu desabava sobre o Recife. Quase não se conseguia enxergar nada em plena Conde da Boa Vista, coração da cidade. O dia tinha sido logo. Rompendo a rotina,  quase duas horas numa fila da casa lotérica na Sete de Setembro,  um almoço sem sal e quase um assalto em pleno meio dia nas imediações do Treze de Maio eram motivos para quase desistir,  não fosse a empolgação para o dia seguinte.    

Teodoro acabara de receber sua certificação para assumir uma cadeira de Titular em Teoria e Crítica Literária e Sociologia da Arte em uma importante Universidade Pública no Sertão Pernambucano.  Ele iria tomar posse, assinar a papelada e voltar para arrumar as coisas, se despedir do seu velho mundo e retornar de vez para seu pequeno oásis aquele novo mundo. Ser chamado de Doutor pelos outros agora finalmente iria ter outro tom, outra cor, outra entoação.  O título de doutor, os anos de noites acordadas sob o efeito de grandes goles de café seriam devidamente retribuídos.  


 A demora do dia o fizera atrasar, lhe fazer cansado, perder o perfume. Chegou atrasado no TIP. Foi ao banheiro: fila. Correu para comprar um lanche: fila. Um pastel de queijo,  uma coxinha de frango com catupiry e um copo de café grande. Outra fila para pagar e pedir. Quase não conseguia retirar a passagem: fila. A única vaga que tinha era na frente, quase colada ao motorista.  Em sua frente dois senhores bem velhinhos agasalhados conversam lado a lado. A chuva parecia que não daria trégua aquela noite. Teodoro se abraçou com sua bolsa, devorou o lanche tão rápido que não fez nem questão de reclamar por ser se queimado com o café,  requentado e fraco como aquele fim de noite de domingo na capital pernambucana.  Inclinou a poltrona e apagou.


 Abriu os olhos. Desorientado, colocou os óculos para reconhecer o ambiente a seu redor. O ônibus que estava praticamente lotado, agora se encontrava quase plenamente vazio. Apenas os dois senhores das poltronas da frente se encontravam no veículo,  que estava estacionado num posto avançado na estrada. Desceu, foi ao banheiro,  pediu uma fatia de bolo, uma xícara de café e sentou na mesa ajeitando seu casaco. Eram quase uma e meia da manhã e estavam em Arco Verde. O motorista informava que as chuvas tinha dificultado o caminho, mas estava tudo sob controle.  Fazia mais frio dentro do ônibus do que fora. E uma discussão entre aqueles dois senhores chamou atenção de Teodoro.


Aonde Alberto que se gastam menos de 10 horas saindo num carro pequeno, de Petrolina para Caruaru?

Você se finge de surdo, de cego e até de burro quando lhe convém,  Augusto. Como você é burro!

Burro, eu? Eu sou burro, Alberto? Deixa eu abrir aqui o Google…


  E ele fez. Meteu a mão na bolsa e pegou um celular, maior que o mundo. Ajeitou o óculos e começou a catucar as teclas de seu celular, copiosamente.  Seu vizinho de poltrona não deixou barato. Fez o mesmo. Pegou um Iphone e seguiu o mesmo rito. GPS e o Google Maps agora entravam em campo para armar e derrubar argumentos daqueles dois senhores.  Tirando aqueles dois a penumbra tomava de conta daquele convencional.

 Novamente tomado pelo sono, Teodoro se quer notou quando voltou aos braços de Morfeus revendo sonhos de um sono que ele mal notou. Tinha ensaiado pegar uma revista que tinha comprado na Rodoviária mas não deu nem tempo. Em seus Tablets, romances à meia luz e trocas de mensagens o restante do ônibus saudaram o silêncio da noite, a chuva da estrada e todo o direito aqueles dois senhores se exaltarem entre si na procura de quem estava mais correto quando se tratava de disputas sobre mapas, distâncias e, claro, o Google. Se Teodoro  soubesse não teria se quer encostado sua cabeça de forma tão tranquila quanto tinha feito.





 Lugar nenhum…



Abriu os olhos vagarosamente. Na verdade os raios de sol foram os responsáveis pelo despertar insolente. Teodoro tinha estado tão cansado e ansioso aqueles dias que se quer tinha conseguido manter-se acordado. Ao redor do ônibus ninguém.  Apenas uma senhora e uma adolescente ocupavam seus respectivos assentos, a senhora no meio e a jovem ao fundo. Ambas dormiam o sono dos justos. Teodoro foi até o banheiro do ônibus mas não tinha água na torneira para lavar o rosto. Voltou para seu lugar e só naquele momento pode notar todo o verde que pintava a paisagem depois da chuva. Sentou, agora um pouco impaciente.  Pelas suas contas era para ele ter chegado por volta das cinco e meia da manhã,  mas já eram quase sete.

Deve ter sido a chuva, claro. Pensou em bater na porta do motorista, pegar algum tipo de informação.  Mas achou melhor esperar. A qualquer hora chegaria ao seu derradeiro destino, roteiro inevitável também para aquele veículo e sua tripulação.  Pegou a revista, folheou algumas páginas, se pegou vislumbrando a paisagem e, de repente, novamente o sono batia em sua porta. Do nada, novo supetão ao chamá-lo. Fim da linha.  


Teodoro desce, ainda desorientado, e estranha o lugar. Uma rodoviária minúscula, com uma vaga para apenas um ônibus e uma cabine minúscula (e vazia) enche seus olhos. Ao lado da cabine da empresa uma carranca enorme lhe sorri. Espera o motorista sair. Com a passagem na mão ele questiona seu paradeiro. Inutilmente. A cidade onde ele deveria ter descido ficou pra trás uns 200km e quatro horas. Não havia nada que podia ser feito. O motorista foi cordial. Educado até.

 Poderia ter-lhe dito que aquilo não era de sua conta, que, o seu trabalho era dirigir e não ser babar dos passageiros e  outras pilhérias, mas não. Ajeitou o cinto e voltou para seu local de trabalho não antes de lhe consolar dizendo que ele poderia esperar o guichê da rodoviária abrir,  falar com o responsável,  esperar que ele compreendesse a situação e esperar, quem sabe, uma vaga gratuita num ônibus voltando para o seu destino desejado.


Eram oito horas da manhã quando seu relógio de pulso parou. Estranho. O relógio era novíssimo e de corda. Ele havia ganhado de presente da esposa por ter passado pela banca examinadora do concurso. O celular estava fora de área e logo também ficaria sem bateria. Ninguém chegava para abrir o guichê da rodoviária,  que tinha também naquele cubículo uma banca de jornal e uma lanchonete, ambas igualmente fechadas. Sentou ao lado da carranca. O teto da rodoviária era de zinco. De repente, aquela chuva de vento. Vento terrível.

 Levantou as folhas, trouxe poeira, fez uma agonia assustadora, quebrando o silêncio daquele começo de dia. Teodoro buscou na bolsa algum biscoito guardado, algum chocolate ali depositado,  alguma coisa que desse para ser mastigada. Estava mesmo com fome. Não tinha nada. A manhã começava a ficar quente quando um senhor de idade, lá pros idos dos oitenta anos, apareceu balançando uma chave e assobiando.


- Bom dia. E seguiu para a banca de revistas. Todas velhas. A mais recente datava de 1986. Trazia na capa um resumo da novela Roda de Fogo, prometendo atualizar e revelar todos os segredos dos últimos capítulos daquela semana. Não tinha jornal nenhum.  E também nenhuma comida. Nenhuma bala de caramelo para enganar o estômago.  


Não é todo dia que a gente costuma receber visita, aqui seu moço.  Então vá desculpando o mau uso. Daqui a pouco a lanchonete abre aí pro senhor comer uma fatia de torta, um bolo de caco ou de milho, quem sabe até uma tapioca. O senhor há de gostar.

Qual o nome dessa cidade, meu querido? Tá sem área aqui. E meu celular tá quase ficando sem bateria. Tem como o senhor me ajudar com isso?

Ajudar, ajudar eu não vou poder não.  Aqui na rodoviária não tem energia. Quando o guichê abrir o senhor pede ajuda aos meninos, vê se eles pode ajudar. Sinal aqui de telefone não pega. Não do jeito que a gente pense que pega. Mas vai dar tudo certo. O senhor está em Lugar Nenhum.




O telefone


O estômago já dava sinais de impaciência.  Teodoro sentou no batente da 'rodoviária' esperando a lanchonete abrir. Por algum motivo que não lhe passou na cabeça não quis arriscar sair. Vai que chega um ônibus e me deixe!  Melhor não arriscar. Olhando ao redor, a cidade parecia aconchegante, apesar de uma extensa névoa que cobria o horizonte impedindo de ver. Talvez fosse aquela nuvem que impedia a área do celular. Aquilo lhe impacientava.  A bateria estava quase arriando e Teodoro literalmente não fazia a menor ideia de onde estava. Por volta das nove horas a lanchonete abria. Uma linda morena de corpo quase que desenhado ou feito em massa trazia consigo uns potes de alimento, uma garrafa de café e o que parecia ser um bolo inteiro de trigo humano travessa grande.


Bom dia minha querida. Você pode me dizer a hora, por favor? Meu relógio não pega e meu celular acabou de morrer.  

É. Aqui não tem lugar pra carregar isso. Você chegou aqui no ônibus também?

Sim. Era pra eu ter descido umas quatro horas atrás.  Mas…

Isso de vez em quando acontece por aqui. Senta aqui.  Saia desse chão.  Tem um café fresquinho aqui, bolo de milho e tapioca se você quiser.


Não tinha muita escolha a se fazer. A tapioca estava quentinha e deliciosa. Um queijo coalho derretido elegantemente entre o coco em uma quantidade pensada de orégano.  Não se pode exagerar no orégano.  Ele é muito espalhafatoso. Se der espaço, ele toma de conta de tudo e deixa tudo com seu sabor. É quase como um amor juvenil querendo dominar o mundo. O bolo dispensava argumentos: aquele toque de queijo ralado dando um sabor levemente salgado na receita,  uma camadinha com uma suave crocância e tudo combinando com aquela xícara de café fresquinho, bem quente e sem açúcar.  


O açúcar tá aí em cima.

Não.  Não precisa. Eu tomo assim mesmo. Que nem a vida.

Dizem que quem bebe café assim não bate bem das ideias. É meio frouxo do juízo e não faz boa companhia.  

Eu não sei se é bem assim. Faz tempo. Tanto tempo que me acostumei.  É que a quantidade de café que eu tomo é tão grande que é mais recomendável ingerir ele sem açúcar mesmo. Se não eu já teria tido uma diabetes.


O Senhor da banca de revista se aproxima, pega uma cadeira e, sem pedir, senta.

Meu nome é Sebastião.  Mas todo mundo me chama aqui de Sebá. Vai me desculpando aí minha insolência mas eu vim pra cá comer um cadinho também.  Não pude deixar de ouvir a conversa.

Tranquilo seu…

Sebá.

Sebá. 'Num bom café sempre cabe mais um', dizia minha mãe.  

Nove Horas. Uma nova chuva fininha começou a cair devagar fazendo as folhas cantarem. Da mesa da lanchonete dava pra ver uma pessoa vindo apressada com um guarda chuva.

Aquela ali é a Ofélia.  É ela quem cuida aqui das saídas.  

Da rodoviária,  você quer dizer. corrigiu a moça.  

Aliás,  meu nome é Marília. Muito prazer.

Teodoro. Muito prazer.

Ofélia devia ter entre 35 ou quarenta anos. Com o cabelo arrumado, escondido por um lenço,  o rosto ainda com vestígios de maquiagem,  unas pintadas, um salto alto segurado entre os dedos. . . Era fácil notar que tinha vindo de algum outro compromisso,  perdido a hora e se atrasado.

Bom dia Ofélia.  A noite foi boa, hein?

Bom dia pra você também,  Marília.  Pra vocês.  Me passa aí um café.  Hoje eu vou quebrar minha dieta.

Ofélia puxa outra cadeira e senta. O café,  quente na medida, foi tomado de um gole só,  como se fosse um simples copo d'água.  Agora Teodoro estava de barriga cheia, a calma voltando já que estava tudo se encaminhando.

Você vai abrir agora o guichê da passagem? Vou precisar de sua ajuda.

Sebá se levantou rapidamente ao ouvir o professor. Foi tão rápido que quase que assusta.

Ele foi deixado aqui pelo ônibus,  Ofélia. Ele quer uma passagem pra fora.  

Sebá sai sorridente. Ofélia e Marília trocam desconfiados olhares e silenciam. Uma vai até o balcão da pequena lanchonete,  a outra coloca seu sapatos de salto alto no chão enquanto procura no bolso as chaves para abrir o guichê. Teodoro termina seu bolo, agradece e pergunta quanto custou tudo. Enquanto põe a mão no bolso a jovem lhe diz que não precisava pagar nada. Respira fundo. O celular está realmente descarregado. O relógio não voltou a funcionar.  A chuva parou. Apesar disso, a neblina parecia não se dissipar. Pelo contrário,  só aumentara.  

Você chegou agora de manhã aqui?

Sim. Passei direto da minha parada.

Sebá,  de longe, novamente não se aguentou. Ele estava mais interessado no professor do que em varrer o chão da rodoviária.  

Ele disse que gosta de café, Ofélia.  Que bebe muito, mas parece que não fez muito efeito. Afinal de contas veio parar aqui.

A mulher levantou a porta de esteira, levantou o balcão do guichê e entrou como se aquele fosse seu trono. Tirou uma caneta de algum lugar e começou a escrever num pequeno caderno.

Eu devo ser sincera com o senhor: hoje não tem mais nenhum ônibus passando aqui. Melhor se acomodar na pousada, alugar um quarto e descansar um pouco. A pousada fica logo ali em frente. O senhor vai pra lá, depois volta aqui. Qualquer coisa eu lhe aviso.  

A paciência do professor ameaçava ir embora. Com um carregador em mãos, ele ajeita os óculos e vai até o guichê.  

Você tem razão que não passa mais nenhum ônibus hoje? Eu não posso acreditar nisso.  Estamos onde? no fim do mundo? Tem como pelo menos carregar meu celular? Preciso ligar para minha esposa. A essa hora eu deveria estar organizando minha nova casa.


Ofélia olha estranhamente para o carregador. Coloca de lado. Só agora Teodoro percebe que não tem nenhum lugar para carregar o aparelho.  Além disso, nenhuma tomada, nenhum ventilador se quer,  nenhum fio à vista.  Só agora ele reparava tal fato. Em toda minúscula rodoviária não havia um aparelho eletrônico se quer.  Não havia nem uma lâmpada. Agora sua paciência o abandonava de vez.

A névoa ainda escondia o horizonte. O professor resolvera fincar o pé e esperar. A qualquer momento um ônibus chegaria naquela rodoviária.  Não é possível que só passe apenas um ônibus por dia por aqui. O relógio tinha morrido de vez. Temia sair em direção a cidade e ser deixado pelo ônibus, qualquer ônibus que por ali passasse. Marília e Ofélia apenas o olhavam em silêncio, enquanto Sebá dispensava um ar de ironia.  Trazia um Tablet consigo na bolsa. Área nenhuma.


Sentou no batente e passou a folhear uma revista em quadrinhos,  aquela que o Superman cai na União Soviética no ligar dos EUA. Divertida. Algumas horas mais tarde resolveu comer alguma coisa,  dessa vez, faria questão de pagar. Almoço não tinha. Tinha a tapioca,  bolo de milho e um restinho de café,  agora morno. Resolveu encarar. Estranhou o fato de ninguém ter aparecido por aqueles lados o dia inteiro. As duas mulheres e o senhor Sebá almoçaram por ali mesmo, cada um segundo a seu modo.

Chegou o fim de tarde. A névoa não se dissipou o dia inteiro mas dava para se perceber que a escuridão cobrava sua participação no dia. As duas mulheres fecharam seus estabelecimentos e se foram. A alegria e educação daquela manhã ia realmente embora. Em seu lugar, silêncio.  Apenas o velho fez questão de resmungar alguma coisas que não dava para se ouvir, não se compreendia:

A moça lhe deu opções,  num foi? Nossa cidade é pequena mas é muito bonita. O senhor há de gostar. Aqui é chamado por muitos aí fora de terra da névoa ou cidade da neblina mas é tudo em seus conformes. O senhor não precisa passar a noite aí com as mutuca e os pernilongo. Vá pra cidade. Peça um quarto lá na pousada de Dona Gertrudes e tire um cochilo. Quando o ônibus chegar um dos meninos lhe avisa.  Sem problema nenhum.  Ou o senhor pode esperar aí até amanhã.  Garanto que é melhor confiar.


Teodoro ficou. Acabou pegando no sono em meio ao frio e aos pernilongos.  Tentou manter-se acordado mas a demora também leva nossas forças.  Depois de umas três pescadas dormiu de vez. Acordou de madrugada. Completo breu. Três crianças acabaram de levar sua bolsa, seu celular e seu relógio. Três meninos. Cada um indo para uma direção.  




A cidade.


A corrida permitiu esticar um pouco o corpo.  Não precisou ir muito longe. Como era que pais decentes poderiam deixar crianças soltas na rua uma hora daquelas? Correu atrás justamente da criança que segurava a bolsa.  O relógio e o celular já não tinham tanta serventia assim. Segurou o menino pelo ombro, com força.  Devem ter corrido uns quatrocentos metros naquele breu. Devolve a minha bolsa, seu pequeno pilantra.  O menino não pegou nada da bolsa. Não deu tempo.  

Onde estão aqueles seus dois amigos?

Eles foram para a cidade.

Me leve até lá.  

Uma pequena rua de paralelepípedos conduzia até a cidade. Na madrugada, a cidade parecia limpa e aconchegante. Casas pequenas e antigas, todas de arquitetura muito parecida, separadas por cores e muros. A cidade era oval. Uma praça  no coração da cidade e uma grande árvore definia a paisagem local. Uma serra circundada a cidadezinha impedindo um olhar além do horizonte.  Para onde se olhava se via aqueles montes. O menino ia falando sobre a cidade, de modo vago.

Aquela ali é uma casa. Aquela é outra. Todas essas são casas. Pessoas moram nelas.

Entendi. Me leve até a pousada, por favor. Preciso descansar um pouco.  

A pousada de Dona Gertrudes ficava no final da única rua da cidade. Subindo uma ladeira. De lá dava para a rodoviária, as duas estradas pra cidade, de entrada e da saída,  a praça e todas as casinhas coloridas.

Onde estão seus amigos, aqueles pilantrinhas? Ainda quero de volta meu relógio e meu celular. A senhora Gertrudes é de boa? Quer dizer, essa não deve ser uma hora muito boa para chegar em qualquer lugar.  

O menino devolve a bolsa ao seu dono. Seus dois comparsas aparecem em seguida. Devolvem o relógio e o celular. A casa de Dona Gertrudes era dividida em dois andares. Uma escada ao lado conduzia aos quartos. Uma grande sobrado com pequenas estátuas de estranhas figuras fechavam o cenário.  Aquela era a maior construção da cidade. Um dos meninos bate na porta três vezes. A dona da casa aparece, trazendo na mão um enorme candeeiro de querosene. A velha deveria ter uns 75 anos. Mancava de uma perna e usava um tapa olho enorme. Os meninos saem correndo assim que a dona da casa aparece.

Ei, meninos! Obrigado por me trazerem aqui. Teodoro faz um gesto de pegar um dinheiro no bolso, mas nem isso faz com que os meninos voltem.

Qual o nome de vocês,  pelo menos?

A dona da pousada fala enquanto o puxa para dentro pelo ombro.

Entre meu querido. E não se preocupe com isso. Ninguém aqui tem nome.



A Pousada


Os quartos eram silenciosos, aparentemente estavam vazios e pareciam ser todos muito limpos, pelo menos por fora. Toda aquela construção exalava um perfume de limpeza. O candeeiro indicou caminho pela escuridão onde, no fim de um corredor, um pequeno mas muito aconchegante quarto lhe foi apresentado. Nada muito luxuoso mas, para quem havia passado um dia inteiro sentado,  sem tomar um banho decente, aquilo era mais do que perfeito.

Uma cama de solteiro, uma pequena cômoda ao lado, uma mesinha debaixo de uma janela central e um banheiro. Uma banheira muito bonita e caprichosa, um balde enorme e um batente de concreto tendo um espaço destacado para os sabonetes e apetrechos para o banho. Quando a rara luz do candeeiro emprestou seu brilho deu para se notar que havia água quente e uma toalha branca, grande, quase esperando pelo professor. A cama bem forrada, o quarto limpo, tudo chamava atenção apesar do avançado das horas.


O senhor vai dormir aqui. Já já eu lhe chamo quando der o horário.  

A cordialidade da dona da pousada era muito bem vinda. O candeeiro não foi deixado no pequeno quarto. Em seu lugar, quatro pequenas velas deixavam o ambiente quase familiar.  Tomou um banho, desfez a bolsa de viagem, garantiu que o quarto estava bem fechado e seguro. Não se deu conta se demorou a dormir. Não fazia a mínima ideia das horas.

Acordou com um gosto amargo na boca. Uma dor de cabeça sem tamanho. O calor insuportável despertou Teodoro.  Tomou um outro banho para despertar o corpo. Milagrosamente a água da banheira ainda estava morna. Lavou a camisa, a meia, a zorba.


Bom dia professor. Bati três vezes em sua porta, logo pela manhã.  Mas o senhor não despertou. Entendi que deveria ser algo relacionado ao cansaço da noite passada.

Entendo.  De toda forma, não falamos sobre valores. Outra coisa: que horas são? Há um telefone aqui que eu possa usar ou mesmo carregar o meu? E que horas são? O ônibus já passou?

Bem. Temos mais de 'uma coisa' aqui. Vejamos: veremos os valores depois.  Eu tinha mesmo que receber você. Deve ser por volta do meio dia. Não temos telefone algum aqui e o ônibus já passou por aqui logo cedo, ainda madrugadinha. Você ainda descansava.


Ao ouvir tais palavras o professor saiu disparado. Descalço,  com uma camisa com estampa do Mickey e um calção desbotado. Saiu correndo em direção a rodoviária.  Chegou em único fôlego.  Nem notou a chuva que caia. A rodoviária parecia a mesma do dia anterior,  com a diferença do rastro dos pneus do ônibus sendo desmanchado pela água, virando lama. A lanchonete oferecia uma sopa no dia. Muito gostosa por sinal. Entre lágrimas o professor devorou aquela revigorante sopa.

Sebá varria o chão com calma. Marília passava um pano sobre o balcão da lanchonete enquanto o guichê do ônibus permanecia fechado.


Estou sem a minha carteira aqui, minha querida.

Não se preocupe. Essa sopa foi feita para você.

Como assim? Não vem mais ninguém aqui nessa joça? Desculpe meu palavreado. Essa madrugada nem consegui dormir.

Ninguém chegou aqui hoje, nem antes de você chegar. Nem há outros e outros dias. Desculpe se as coisas são assim aqui.





A paisagem


Na volta para a pousada, uma topada dura quase lhe arrancou a cabeça do dedão. Soltou uma série de palavrões. Já sem a chuva, reparava o quanto lindo eram as casinhas daquela cidade. Entre cores vivas, tudo era milimetricamente limpo e organizado. Algumas casas abertas, outras fechadas, dividiam olhares para o recém chegado. Um detalhe chamava atenção: a maioria dos moradores eram de idade avançada. Votou para a pousada, saudou a anfitriã e chorou de soluçar em seu quarto.  



De manhã…


Acordou decidido a resolver aquela situação.  No dia anterior, depois de um ataque de choro e de sono, tinha caído desacordado num reparador descanso. O desespero era tão grande que chegava a tocar sua pele. O relógio não pegava, não havia eletricidade  em canto nenhum e reparava agora que não sabia sr quer o nome da cidade onde estava. Quando desceu até a recepção da pousada, Dona Gertrudes o esperava com o café da manhã posto. Numa bandeja café,  bolo de milho, queijo coalho assado e uma pamonha quentinha.

Me diga uma coisa, dona Gertrudes: como é que eu vou lhe pagar? Quanto é que eu lhe devo, afinal, já estou literalmente abusando de sua hospitalidade.

Meteu a mão na carteira,  puxou uma nota de R$100, dobrou e entregou a velha, que estranhou de início o gesto e a cédula.

O senhor não nos deve nada, professor. E pode ficar com seu dinheiro.  Como o senhor há de ver,  ele não tem muita serventia por essas bandas.

Os meninos que havia lhe roubado duas noites atrás estavam de frente da pousada.

E vocês três,  que estão fazendo aqui uma hora dessa? Vocês não tem aula não? Não tem casa pra ajudar a mãe em alguma coisa, não?

Os meninos se olhavam meio que falando entre si. Coisa de menino mesmo. Os três vestiam-se do mesmo modo: uma camisa branca,  uma bermuda azul e um tênis.  Parecia uma espécie de farda, apesar de serem notadamente diferentes.  

A gente veio arrumar trabalho hoje. Coisa pra fazer. E o senhor, vai fazer o que tanto hoje?

Hoje eu vou explorar, conhecer a cidade. Cês não querem ir comigo não? Qualquer coisa vocês podem me encontrar mais tarde na rodoviária.  É lá que eu vou estar mais tarde.


Se despediu dos meninos e partiu. Não havia dúvida: ele era o único hóspede da pousada.  Enquanto descia a ladeira na única rua da cidade,  olhares curiosos se escondiam por entre as casas ao redor. A cidade não devia ter mais de 50 casas. Na contramão da rodoviária, uma igrejinha ficava no pé do monte que, de tão verde, chega entorpecia as vistas. A mesma névoa cobria o horizonte. A mesma chuva caindo ordinariamente. Foi até a rodoviária,  soltou um bom dia sem compromisso,  puxou a cadeira, pediu um café e sentou. Em seu colo o único livro que conseguiu levar para a fatídica viagem: Crime e Castigo. Ele tinha ganho da sogra mas tinha desistido da leitura, pelo menos umas cinco vezes. Maquele dia não arredou o pé.  Ficou na rodoviária até o cair da tarde, quando não conseguia mais ficar sentado e ter desistido daquele livro bem mais umas cinco vezes só naquela tarde.


O ônibus não vem, não é?

Voltou para a pousada, tomou um banho,  trocou de roupa e voltou para o mesmo lugar. Não se incomodou quando ficou sozinho na rodoviária.  Estava muito claro que, aqueles que frequentavam o ambiente o faziam por outros motivos. Iam pelo café,  jogar baralho, dominó ou conversa fora. Quando o sol ameaçava largar eles iam juntos. Eram senhoras e senhores, todos idosos, tão mergulhados em suas rotinas que pareciam pouco se importar com a dor daquele jovem que acabara de chegar.

Ficou na rodoviária a noite toda. Fez isso três dias seguidos. No quarto dia de vigília um dos garotos veio lhe buscar.


Dona Gertrudes mandou eu levar o senhor pra pousada. Aqui o senhor não vai resolver mais nada. E tem uma cama quentinha lhe esperando.  Água quente na banheira para o senhor tomar um banho. Olha praí! Tá quase terminando o livro e ainda tá aí,  de vigia. Tá ficando até feio.


  Cedeu aos argumentos do menino.  Pela manhã foi de casa em casa, de porta em porta. Se apresentou,  perguntou nomes, fez questão de analisar a realidade de cada recinto. Com exceção dos três meninos e das moças da rodoviária, Ofélia e Marília, o restante da população local era bem velha. Também não conseguia recordar de nomes daqueles moradores, mesmo tendo acabado se conhecê-los.  Gertrudes e Sebá,  provavelmente Sebastião. Esses eram os únicos nomes que lembrava. Das casas, muitas estavam vazias. As que haviam moradores eram modestas e aconchegantes santuários.  Foto dos familiares,  altar de Nossa Senhora, cadeira de balanço na sala e algumas redes encostadas, prontas para o serviço,  quem sabe uma soneca depois do almoço. Não havia um único rádio nem televisão.  Claro. Mas já que o ônibus não vinha, a decisão tava tomada e mantida: voltaria para a pousada, arrumaria suas coisas e sairia da cidade por conta própria.



A estrada


Pela manhã ele se organizou,  colocou sua bolsa nas costas e partiu. Deixou o restante do dinheiro que tinha na carteira, uns R$180,00, no balcão de dona Gertrudes junto a um pedido de desculpas pela pressa na saída e agradecimento pela hospitalidade. Teodoro estava tão cansado, tão indisposto, tão indignado com aquela situação que não podia mais suportá-la. Precisava sair de lá urgentemente.  Saiu antes que o sol desse o ar de sua graça.  

A medida que se dirigia para a saída da cidadezinha Teodoro olhava para a rodoviária na esperança de aparecer um ônibus para, uma moto ou qualquer carro naquele fim de mundo. Mas não.  Agora, toda sua educação havia se esgotado. A medida que seguia aquela pequena estrada dois  estranhos movimentos ocorriam simultaneamente: a neblina, espessa, branca e enigmática ia cobrindo a cidade, que parecia cada vez menor e distante e a chuva, aquela mesma chuva que aparecia acolhedora pela manhã,  agora era torrencial. Chegar até a estrada não foi o problema.  Uma pequena estradinha de terra levava até a pista principal. Coisa de 3 km separando a estrada da cidade. Parou confuso.  Não tinha a menor noção de qual lado deveria seguir e não via nenhuma placa se quer aonde sua vista alcançava.  Para a esquerda a cidadezinha sem nome, agora totalmente tomada e escondida pelo nevoeiro. Para a direita a dúvida.  E onde ele estava a chuva. Uma chuva tão terrível agora que se quer permitia ver o caminho. De repente, algo lhe prende a atenção: dois faróis vinha ao longe. O destino só podia estar lhe pregando uma peça. Era um ônibus.  Passou tão rápido por ele que, ao encostar numa poça d'água deixou Teodoro completamente encharcado. A vista foi escurecendo até que tudo se apagou.



A cabana no meio do mato


Um travesseiro conforta um pescoço tenso.  Teodoro nota o ambiente ao redor. Uma casa antiga,  quase velha. Um fogão à lenha, uma rede pendurada no canto, a cama velha e um cheiro de café. Aquele aroma foi o motivo de ter despertado. Uma senhora sentada numa cadeira velava seu sono, o esperando acordar.

Bom dia, professor.  O senhor dormiu um tempinho agora. Deseja se alimentar agora?

O professor não entendia. Seu rosto não negava. Apesar da notícia do sono, não parecia ser verdade. O corpo não respondia.  Havia o cansaço e parecia que ele não mais o abandonaria.  

Eu não entendo, minha senhora.  Eu estava na estrada, começou a chover e eu apaguei.

Eu te encontrei caído na beira da estrada e te trouxe até aqui.  Deixe eu lhe dizer algumas coisas: o ônibus não vem. Você não vai sair daqui e não adianta sair andando pela cidade procurando coisa. Me agradeça por você estar aqui.

Não deu ouvidos a senhora.  Levantou-se e seguiu o caminho da rua. Mesmo com a perna bomba, a visão turva, saiu pegando novamente a estrada.  Lhe faltou ar. Depois de se recompor retornou pra cabana. Nem precisou bater na porta. Estava aberta pra ele. Tomou o café,  comeu uma fatia de bolo.

Eu não sei aonde estou. Por que não posso sair daqui. O que tem de errado comigo,  com esse lugar e o que eu devo fazer agora?

Teodoro não conseguiu segurar as lágrimas.  Havia perdido literalmente a noção do tempo. Não tinha mais dinheiro. Não sabia o que fazer.

Bem. Há coisas que você precisa ver e descobrir sozinho.  



Triste surpresa



De repente começou cair a maior chuva que aquele professor viu em sua vida. A senhora,  que se apresentou com o nome se Clara, o aconselhou a ficar um pouco mais. Não tinha pra quê voltar pra cidade com toda aquela chuva. Ali ele estava seguro. Era muito perigoso sair na chuva.  A cabana, apesar de bem simples e notadamente muito antiga, tinha um clima aconchegante. Enquanto lá fora o mundo desabava era servido um café feito no fogão à lenha junto com um cuscuz com feijão e ovos fritos refogado na cebola e alho. Um aroma acolhedor preenchia o ambiente e acordava o estômago, que roncava dando sinais de vida. A chuva não parou. Só pela madrugadinha foi que começou a dar trégua.  Quando o sol ameaçava aparecer, Teodoro se despediu da anfitriã, que já estava de pé,  indicando o caminho de volta a cidade.  


O caminho foi bastante difícil no começo.  A passagem da chuva tinha deixado um pouco de barro na estrada, o que fez demorar um pouco a caminhada. Com pressa,  mesmo sem ter a noção do que fazer dali pra frente nem pra onde iria, o professor prendeu um pé na lama, caindo em seguida. Levantou,  conferiu se não  havia sido pior, se não havia se machucado, limpou a lama, soltou uns dois palavrões e seguiu.  Dava pra ver o teto da igrejinha de longe, uma capelinha que ficava bem no meio da cidade. O sol aparecia de um modo deslumbrante contrastando com a terrível tempestade da noite anterior. De longe, Teodoro via um motorista fardado, todo de azul, gravata preta, crachá pendurado no bolso da camisa, subindo num ônibus, a porta fechando e dando partida. Nunca aquele homem correra tanto. Correu o mais rápido que pôde, movido inteiro pela adrenalina ou pelo desespero. Não deu. Mesmo gritando, sacudindo os braços pra cima, falando bem mais que dois palavrões, o professor viu o ônibus sair do estacionamento,  fazer a manobra e a curva e seguir o rumo da estrada. Fosse uma maratona ou uma prova de velocidade Teodoro ganharia.  A gente faz coisas que julgamos não conseguir quando somos tomados pela agonia misturada com a esperança.  Mas não. O professor sentiu uma enorme e repentina dor do joelho esquerdo. Caiu feio. Levantou,  conferiu se não  havia sido pior, se não havia se machucado, limpou a lama, soltou uns dois palavrões e seguiu.


Chegou a rodoviária.  Uma jovem com uma mala gigante e uma bolsa de costas aparecia na rodoviária como ele,  quando por ali chegou, meio desorientada. Ofélia e Marília aguardavam por Teodoro com um convite: a banca de revista estava em  silêncio. Todos agora estavam. Sebá, zelador da rodoviária responsável pela banca havia morrido. De repente, do nada, todos os moradores da cidadezinha se dirigiram para a rodoviária, onde dois senhores vinham empurrando o caixão sobre uma carroça pequena com rodinhas velhas improvisadas.


Dona Gertrudes ficou no centro da rodoviária,  ao lado do caixão.  Ninguém soltou se quer uma palavra. Olharam-se entre si por breves momentos.  

Precisamos de alguém para substituir nosso amigo Sebá no trabalho aqui na rodoviária.

O tom solene de Gertrudes soava autoritário, além de melancólico e triste. Teodoro não pensou muito, mas levantou sua mão para o serviço.  Na rodoviária poderia esperar pelo ônibus,  se manter ligado e até ganhar algum dinheiro pra variar.

Você não pode, professor.  Você vai… sair daqui em breve. Não é?

Outro breve silêncio.  Um outro senhor, lá no fundo, levantou a mão. Devia ter uns oitenta anos. Se dirigiu com dificuldade até o centro, perto do caixão.  

Meu nome é… Antônio.  Antônio Almeida. Eu era Linotipista. Poderia ajudar aqui sem problemas.

Mais um breve silêncio. A jovem recém chegada olhava de longe toda aquela cena. Não ousou dizer uma palavra.  Seu rosto deixava claro não entender bem do que tratava aquilo ali.

Mais alguém quer dizer alguma coisa? Não? Podemos prosseguir?

Os únicos meninos da cidade, aqueles mesmos três que tentaram roubar a bolsa do professor,  seguiram se revezando, puxando o caixão enquanto uma fila ia se formando em seguida. Gertrudes fez um sinal para Teodoro,  que não sabia bem o que fazer diante daquela estranha mistura de ritual com procissão.  

Me dê licença,  professor.  O senhor pretende ir conosco para o enterro? Se desejar ir, preciso lhe informar que, por força do hábito,  é necessário absoluto silêncio durante todo o percurso. Essa é nossa antiga maneira de homenagear nossos mortos.

A recém chegada jovem se dirigiu até os dois. Visivelmente cansada, demonstrando dúvida e apreensão.  

Me desculpem. Eu deveria ter descido no destino final, mas parece que algo de errado aconteceu.  Que cidade é essa? Eu estava indo para Petrolina. Pensei ter ouvido o motorista avisar que esse era o terminal. Eu me chamo Clarice.  Estou indo conhecer a cidade de minha mãe.   

Você desceu na parada errada, minha querida. Nós temos um quarto e uma cama para você, em nossa pousada.  Se você puder esperar aqui, por favor. Na volta nós podemos conversar melhor.  

O caixão seguiu até o fim da estrada de terra. Ao chegar, um caminho entre touceiras de mato, espinhos e ortigueiras foi percorrido.  Os três garotos encontraram dificuldades para atravessar o caixão por entre os arbustos, mas apesar do esforço   foram conseguindo. Depois de subir uma serra, silenciosamente, se encontraram em um vasto campo verde, cercado por enormes palmeiras. Nele, uma infinidade de covas registrava o clima daquele cemitério.  Quando os meninos chegaram até a única cidade aberta do local começou a chover novamente.  


É preciso rapidez.  Informou Gertrudes.  

O caixão foi colocado em seguida em sua cova, a terra foi sendo colocada sobre ele enquanto pequenos sussurros eram ditos, misturados com o barulho da chuva, confundindo-se entre o som do vento e das folhas. Teodoro seguia observando aquele processo. Em toda a cidade, apenas Marília,  Ofélia e seu Antônio,  novo zelador da rodoviária, não estavam naquele cemitério, junto com Clarice,  que esperava o retorno de Dona Gertrudes para mais informações.  Ao todo deveriam ter umas trezentas pessoas ali. Até a senhora da cabana na mata estava presente naquela ocasião. Com a exceção dos três meninos, as duas mulheres da rodoviária,  o professor e a recém chegada,  todos os outros moradores aparentavam ter o peso dos anos marcados em suas fases e seus cabelos.





Recém chegada


O nome da jovem era Marcela. E tinha um pequeno espelho pendurado em sua bolsa. Tinha acabado de notar que o relógio estava parado e o celular também não dava área.  

Nem tente procurar uma tomada, minha cara. Não vai achar. Deus trancou de chave esse lugar. E pelo lado de fora. Meu nome é Teodoro.  E agora, olhando daqui pra você,  reparei que não tenho ideia de quanto tempo estou aqui. E que aqui não tem nenhum espelho se quer. Você pode me emprestar?

A jovem entrega o espelho ao homem.  Um pouco apreensiva,  um tanto contrariada, pra lá de irritada e nervosa. Teodoro começa rir. Nota que, aparentemente,  está um pouco. Mais velho. Terá sido a barba por fazer? As últimas noites mal dormidas? Seu Antônio olhava espiava a conversa iniciada pelos dois e ria também.

O senhor está por aqui mais tempo do que parece e do que devia, não é professor? As respostas não estão aqui. Procure na floresta. Procure pelas crianças na cabana da floresta.

Que floresta? Que crianças? Não tem criança nenhuma pelo lado de lá.  Eu já estive lá. A Floresta está lhe esperando.

Depois que disse isso, Seu Antônio voltou a trabalhar. Passado uns dias, Marcela começou a ajudar na rodoviária. Passava os dias na expectativa de ver seu ônibus voltar. Teodoro buscava pela cabana na floresta.  Inutilmente.  Os meninos também haviam desaparecido e, de tanto tédio,  só a chegada da chuva que parecia modificar o ambiente.  Aliás,  o professor agora percebia que a chegada da chuva era o anúncio para alguma coisa. Marcela trabalhava bem. Quando Seu Antônio também morreu coube a ela assumir de vez o seu lugar.

A rodoviária permanecia. Quando a chuva vinha para levar alguém,  logo um ônibus tratava de trazer alguma desavisado para aquele mesmo lugar, onde não se sabia data, ano ou geografia. Teodoro estava velho.  Não percebia isso diretamente pelo simples fato de não ter um simples espelho naquele lugar.  Apenas os meninos e a dona  Gertrudes permaneciam os mesmos. Eram como zeladores, cuidadores,  mantenedores daquele limbo.

E Teodoro definhou. Só lembrava seu nome por ter ele bordado em sua bolsa, agora também velha e devorada pelo tempo. Chegava na rodoviária,  puxava uma cadeira,  sentava rapidamente e pedia um cafezinho quente. Todo dia. Quem sabe o que pode acontecer pra gente nessa vida?

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