No fim, tudo termina em . . . Forró.




Eu tinha que ir para o aniversário de uma das minhas melhores amigas. Talvez a única.  Pelo menos a única que a minha mãe deixava entrar em casa, ir até o meu quarto e reclamar comigo por estar doente sem conseguir ir para a escola. Um ano antes ela tinha feito aquela festa de 15 anos e, ao completar 16, apenas eu ia poder comparecer em nome da turma. Era um sábado chuvoso de noite e eu iria sozinho de Vila João de Deus até a Vila Sotave, duas favelas vizinhas. E eu ia sozinho.  


Tinha levado um presente em nome dos meninos. Não lembro qual. Eu estava com uma calça social preta, um sapato bem engraxado e uma camisa verde florida horrível mas que eu, não sei o motivo, gostava pra caramba.  Essa época. Não me perguntem o ano também.  2001, 2002…


Lembro também que eu estava com o cabelo bem baixinho. Como a grana era escassa (talvez a razão pra não me recordar do dito presente) a gente assumia o Black Power ou o Pagode ( estilo que sempre acabava numa situação chamada baculejo por parte da Polícia naquelas ruas e becos.


Falei que estava chovendo não foi? Minha mãe perguntou se eu ia mesmo sair naquela chuva. Claro que não.  Botei Jonas no meio da história (Jonas era da turma e morava 'perto' da aniversariante). Ele não ia. Tinha alguma coisa da igreja para ir. Bem,  a saída da João de Deus, uma viatura atravessada no meio da rua. Era dia de distribuir tapas e filhas da puta de graça. Lembra que eu falei do sapato não foi? Não precisava ter gasto graxa. Foi eu sair de casa pra iniciar um dilúvio.


Os homi paravam os moleques que passavam de bicicleta, de moto ou a pé. Nem todos. 'Claro'. Mas eu estava apresentável.  Não era possível que eles iriam me parar também. Errei. É 'claro' que rolou aquele encosta na parede filho da puta basicão. Encostei na parede. Baixa a porra do guarda chuva. Baixei. Vai pra onde numa chuva dessa? Pra festa de uma amiga. Numa chuva dessa? Uma coisa que eu faço até hoje, seja pra ir pra longe ou pra padaria na esquina: sempre ande com um documento.  Lição de mãe.  Documento não salva mas alivia. Talvez aquela chuva tenha molhado o presente de Camila, que eu lembro que compramos com um rateio dos amigos da escola.  Segui o caminho todo molhado dos pés a cabeça.  Vida que segue.


Aí algum desavisado vai dizer que o preto só fala disso. Demoníaco a PM? Vitimismo? Mi-mi-mi? Não dá pra ser a Maitê Proença, falar de viagem e cantar o vazio. Na favela a gente leva baculejo da PM quase todo dia, tanto que, se a gente não cuida, anda de cabeça baixa, olhando pro chão pra sempre.


Cheguei a festa. Outra triste surpresa, essa realmente ruim, já que algumas coisas podem ser piores que outras quando se tem 16 anos: era uma espécie de festa à fantasia e eu nem nem. Todo mundo de preto, maquiagem, rosto pintado e eu, literalmente parecendo um crente que errou o endereço da igreja. Realmente, fazia uns dias que eu havia decidido deixar o caminho dos céus e andar sozinho tropeçando e caindo, levantando por conta própria e aprendendo errando o caminho.


Outra novidade: a aniversariante não estava no local. Deixei o presente encharcado junto aos outros e me encontrei num cantinho.  Não conhecia ninguém.  Era por volta das 20hrs e eu havia prometido pra mãe que estaria de volta às 21hrs. Coincidentemente o horário do culto. Você sai da igreja mas ela não sai de você.  Não é isso que dizem?


Fui até o DJ depois de duas cervejas eu acho. Dei uma olhada na discografia disponível.  Um CD de Santana, O Cantador, se destacava. Vocês não fazem ideia da febre que foi o disco Xote Pé de Serra, lançado um ano antes. Pedi para o DJ colocar pra tocar. O clima ficou daquele jeito. Imagina: entre Linkin Park, Evanescence e korn e o cara bota pra tocar Tamborete de Forró numa noite de aniversário,  numa noite de chuva, numa noite de juventude vestida de preto e máscara?


Alguém reclamou com o DJ. Obviamente. Nessa altura, Camila,  a aniversariante,  tinha aparecido deslumbrante num vestido preto e um salto alto que a deixava ainda mais alta. Foi meu irmão que pediu pra tocar. Deixem. Vocês não gostam não de Forró? É São João também! Bons tempos aqueles. A gente tomava uma cerveja e já se achava transgressor o suficiente para enfrentar, mudar e domar o mundo. Pelo menos até as 21hrs, é 'claro'.


Tava chovendo, eu tinha que voltar. O motivo do cabelo Pagode era também o trabalho.  E no domingo pela manhã eu ia bater cartão. Na volta uma coisa engraçada: a mesma viatura enfeitava a rua ainda mais enlameada e debaixo de uma chuva ainda mais forte. Não era possível que eu ia tomar mais um baculejo pra completar o combo? E não me reconheceram mesmo. Mandaram encostar na parede novamente. 


 Cabeça baixa, documento na mão,  olhando pro chão.  Um dos 4 PMs faz a seguinte sugestão: deixa o irmão ir. Ele tá voltando da Igreja, pô. Três segundos de silêncio. Pode ir irmão.  Boa noite.  Acho que foi a festa da Camila, a música do Santana, o São João que tinham me livrado naquela hora do segundo baculejo. Foi boa a festa? Tomasse até chuva num foi? Foi mãe.  Mas a festa foi muito boa. 

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