O calendário



Dona Carminha adotou uma estranha mania durante a pandemia. Para evitar desgastes, dizia ela, comprou um calendário com desenhos de gatinhos na capa. Comprou três.  Colocou um na geladeira, outro na porta do guarda roupa, outro no banheiro. O da geladeira ela contava os dias do gás.  Virou especialista. Não queria ter que cozinhar com lenha, especialmente naqueles dias. O do guarda roupa ela contava as últimas visitas dos filhos,  as ligações dos netos ou a visita das amigas mais próximas.


Carminha morava sozinha. Viu uma geração de amigas indo antes do tempo, como ela dizia. Alguns morreram de abandono, de tristeza, melancolia.  Outros esquecidos sem remédio,  sem dinheiro para garantir seus tratamentos.  Ser velho no Brasil é decreto de morte, dizia. Muitas amigas morreram, outros não sabiam fazer vídeo chamadas para conversar nem tinham paciência para o celular ou para a TV.


Não tinha mais dominó nas sextas-feiras.  A pandemia foi mais uma desculpa para ratear as visitas dos filhos. Todos fazendo trabalho remoto.  Home office. Nem se quer ligavam pra ela. Seis filhos e três netos e nada. Nem um zap para entreter. Por isso o terceiro calendário, o do banheiro. Esse ela comprou com uma foto do Brad Pitt. Achava ele lindo e maravilhoso.  O calendário do banheiro ela usava para contar os dias pra sua morte e outras coisas. Afinal, era o Brad Pitt jovem e sem camisa, convenhamos.


Foi num dia desses, fazendo cocô e olhando para Brad Pitt que ela teve uma ideia genial. Ela contaria os dias da quarentena, cada dia trancada naquele quarto e os cobraria com juros à Vida. Somando-se os três lockdowns e os cinco decretos do governo, São Paulo estava há uns quarenta e cinco dias em isolamento total. A banca da esquina estava fechada. Parecia que seria de vez. Era lá onde dona Carminha comprava seis cigarros e os jornais que não lia. Enjoou de cara da CNN. Aquilo não era jornalismo. Um bando de mequetrefe falando asneiras o dia todo no YouTube.  


Não aguentava mais tanta Live. Decidiu parar de fumar, obrigada, começou um curso online de culinária japonesa e processou a empresa de energia por uma cobrança indevida. A vida lhe devolveu os dias roubados da quarentena.  Estava agora vinte anos mais jovem e irreconhecível. Pensou em arrumar um boyzinho  mas ninguém estava no nível que ela exigia. Pra ela, só o Brad Pitt. A quarentena lhe devolveu os dias roubados com juros. Dona Carminha não se chama mais dona. Nem Carminha. É só Carmem Elisa e acabou de completar 27. Vai ao cinema uma vez põe semana,  quando tem filme que presta e reclama dos preços da comida, da demora do trânsito e da péssima escolha pra técnico do Corinthians.  Dona Carminha resolveu viver. Nesse caso,  foi uma escolha dela e que a vida resolveu não se intrometer.  


Comentários