Nós, os racistas


 


 



Eu lembro da Copa do Mundo de 1994. Lembro entre aspas. Eu tinha acabado de completar sete anos e aquela final me valeu o apelido até hoje de memória de elefante. Eu deitado no sofá, com a mão no rosto para não os pênaltis. Meu pai, que trabalhava de vigilante, saiu antes do fim do jogo. E muito puto.  Lá em casa tinha uma foto enorme de um bebê, colado na parede. Não sei de onde veio. Meu pai dizia que ele era o filho do Taffarel, a quem eu descobriria anos mais tarde que se escrevia com dois 'ff'.



Quando o Roberto Baggio botou aquela bola pra fora eu bati com o pé na parede. De tábua.  Furou a parede e eu cortei meu pé dos dois lados. O pé e a canela. Ainda assim saí correndo, arrodeando o quintal e gritando. Eu vi Romário e Bebeto, Edmundo reinando no Vasco, Rivaldo ganhando o mundo, vi a França dando uma aula em 98 e a gente se reerguendo, mesmo que de madrugada, caladinho pra não acordar os vizinhos em 2002. E vi também aquele 7 X 1 da Alemanha.  Esse sorrindo. Foi Golpe! Fora do Estádio.  



Mas eu nunca vi uma situação tão odiosa quanto o ocorrido com Vinicius Junior no dia 21 de maio de 2023 na Espanha. Uma data para ficar guardada e não ser esquecido de modo algum. O campo de Futebol deve ser igual um Teatro. No palco a gente se sente em outro mundo. A energia é tão grande que você simplesmente é tomado pelo papel. Acho que deve ser mais ou menos assim que um jogador se sente.



No caso do futebol é o barulho que dá o tom da coisa, no lugar do esperado silêncio da plateia do teatro, material a ser explorado e coletado num final esperado ou desastroso. Um jogador de futebol, no centro do campo, deve se sentir um Deus. Mas lá está Vini Jr sendo chamado de macaco.  O avesso da arte e o inverso da civilidade.



No estádio lotado operamos a catarse do ódio.  Gritamos nossos medos, xingamos a pobre da mãe do juiz, expurgamos tudo que temos de mais podre e pobre. E não é nada belo. É como se a gente se esvaziasse para depois se encher de novo: o preço do gás, da bandeja do ovo, os gritos do patrão, os relatórios da quinzena, os boletos, o cachorro do vizinho que caga na porta.



A boca fala do que o coração está cheio. E estamos cheios de quê mesmo? Se pensarmos direitinho vamos entender o motivo pelo qual demonizam tanto as torcidas organizadas ou mesmo as redes sociais. A culpa não é da Internet ou mesmo do futebol.  Só reproduzimos o ódio nosso de cada dia que nos dão hoje.



O caso envolvendo os jogadores negros diz muito sobre a nossa sociedade.  E os cantos homofóbicos, e o time que contrata um estuprador pra técnico, e a diretora do clube que chamou o nordestino de parasita, as lavagens de dinheiro, as apostas liberadas, os jogadores comprados, a sonegação de imposto, os muitos casos de estupro por astros nacionais e o salário das jogadoras femininas ainda menor que a dos homens?



São tantas perguntas que aquela atitude que o tomou o Vini Jr diante de seus algozes só nos deixa com mais raiva e nojo de uma sociedade que apodrece a cada dia seguindo a receita do lucro de uma elite branca. No final das contas (e essas só aumentam. Com juros) aquele cartão vermelho foi pra todos nós. Mais uma bala perdida tirando o sorriso de uma criança num morro da vida qualquer.  Mas um dia a conta chega. Tudo tem limite nessa vida. 

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