Procura-se. . .

 



Em 23 de abril de 2003 acharam os diários de meu amigo Antônio Pedro. Agora todos os jornais fizeram questão de simplesmente não tocar mais no assunto. Nenhuma palavra se quer. Nem uma piada, nem uma crônica,  nenhuma linha. Era um misto de arrependimento e vergonha. Durante quase cinco meses os dois principais jornais de Pernambuco dedicaram tempo e espaço ( inclusive em suas primeiras páginas) para falar do moço desaparecido do Sertão Pernambucano.


Ninguém se recorda bem. Do nada aparece um estagiário que chegou com uma pitoresca e inusitada história de um jovem sertanejo que havia desaparecido do nada, e várias teorias envolviam aquele sumiço. Alguém mandou uma pequena equipe até aquela pequena cidade cobrir os fatos. Alguém achou por bem de colocar aquilo em sua primeira página.  Alguém, por ciúmes,  deu corda ao assunto e aquilo rendeu comoção,  solidariedade, muitos exemplares vendidos. 


A imprensa pernambucana estava realmente precisando de uma cobertura daquelas proporções (para vender aos patrocinadores e publicitários), declarou em uma tese de Doutorado da UFRJ mais um dos pesquisadores e estudiosos do caso que foi até aquela pequena cidade sertaneja averiguar,  pesquisar, conferir 'em loco' tal acontecimento. Quando surgiram os diários o alvoroço foi tão grandes nos bastidores que pela primeira vez em décadas aqueles dois distintos empresários, inimigos declarou e concorrentes tiveram que se reunir em pleno domingo de clássico pernambucano para avaliar e discutir sobre o assunto.



Pois bem. Depois de meses de matérias sensacionalistas especulando sobre os motivos, onde se encontra, que fim levou o modesto e querido jovem Antônio Pedro? A Polícia iria apresentar pra sociedade os diários encontrados da provável vítima, que não só davam conta do (agora suposto novamente) desaparecimento do jovem bem como todo abririam uma enorme avenida para esculhambar, jogar na sarjeta e estabelecer o maior precedente para estudo de caso, um verdadeiro manual sobre o que não se deve fazer no ofício do jornalismo.  


Reconhecendo a lambança ( e poucos dispostos a admitirem o erro) os dois maiores grupos de comunicação do estado teria que fazer um esforço, gastar uma grana, conversar e convencer muita gente para abafar o maior caso de desaparecimento da história recente de Pernambuco. Acontece que os diários do jovem Antônio Pedro detalhavam,  davam conta de que o sumiço do jovem era por causa de uma mulher que, aparentemente,  havia lhe dado um fora e algo relacionado ao respeitoso e amável pedido dessa jovem em questão da alma daquele moço em um ritual pagão milenar. Isso mesmo que você leu.



Aqueles profundos olhos azuis me fisgaram. . . Eu estava sentado tomando meu Campari quando fui abordado por aquela jovem. Ela era loira, olhos azuis,  pele clara, possuía um sorriso tirado de um desses pôsteres de propaganda de loja de joias caras e do nada me oferece uma cerveja de seu copo que estava, nitidamente pouco gelada. Aquilo não era pra mim mas, como de costume, decidi seguir meus instintos e convidá-la para sentar-se comigo e me fazer companhia. De repente algo sobrenatural tomou conta de meu corpo e meus sentidos aguçados me fizeram conduzir vitoriosamente aquele ritual bélico de fim de tarde. 


Batemos um bom papo, ela me ofereceu uma carona, fomos até a sua casa em seu carro. Eu nunca tinha ficado tão excitado,  tão nervoso, tão vivo que, quando ela me fez o convite pra gente ir até a sua casa para se conhecer melhor, eu quase vomitei de agonia, coração acelerado. Aquilo estava mesmo acontecendo?

Pois bem, cara. Hoje é o último dia em que a gente se vê e essa é a minha última semana que eu tenho de vida. O resto… bem, o resto vai saber, né? Não é assim que dizem? Não é assim que falam quando tocam no assunto casamento?



Aquela foi a última vez que vi meu amigo com vida. Nervoso. Assustado. Mas vivo. Quando a reportagem saiu, apenas citando que haviam indícios para se resolverem o caso, o que me soou claramente como uma enorme pedra que iriam colocar sobre o corpo sumido de meu amigo Antônio, resolvi apelar. Depois que encontraram seus diários acharam motivos para crer que ele estava, no mínimo,  perturbado. Toda a imprensa local se deu conta de seu erro sensacionalista. Divulgaram até o extremo Aquela história e agora, aparentemente,  era tudo uma grande farsa. Os diários de Antônio Pedro davam conta de uma loira alta, linda, olhos azuis, cabelo solto no vendo.  . . Custava acreditar que, naquele caso, um cara feio e liso, iria chamar atenção de alguém tão bem afeiçoada.  Mas ela não existia.



Como eu defino o Antônio Pedro? Um cara exigente.  Sei lá,  ele sempre foi muito certinho,  muito organizado. Tão organizado que chegava a ser chato, sabe? Mas isso não define nem significa nada. Eu também sempre fui uma pessoa atenta, ligada, mas não levava muito pro lado do exagero. Ele não.  Ele acordava, tinha que forrar a cama do mesmo jeito do dia antes; dobrar o lençol do jeito dele, o 'jeito certo', só andava com roupa passadinha, não misturava os alimentos no prato e detestava coisas fúteis, como organizar livros em ordem alfabética,  caçar poeira em cima de superfície,  dizer que o tudo que era canto tava impregnado de bactéria.  


Quando crescemos e ele começou a namorar a coisa só piorou. Não existia ninguém que tivesse à altura dele, mesmo sendo ele um pouco baixinho.  A mulher para ele tinha que ser inteligente,  mas não tanto ao ponto de saber mais do que ele, esses negócios de corrigir ele em público,  solicitar o Uber do celular dela, sair com as amigas pra baladas… pra igreja ele não queria ir. Mas julgava que só 'as irmãs' que prestavam pra ter um relacionamento sério,  fixo. Mas era um absurdo a 'mulher andar vestida da cabeça aos pés parecendo uma cortina, sem raspar os pelos da canela, não botar um batom, não muito forte, claro, na hora de sair. De repente eu vejo essa notícia dele e o único nome que sei é que a tal da Dona se chamava Cíntia.  



Os diários davam conta, em parte, do que teria lhe ocorrido. Mas a verdade é mais complexa e as vezes difícil de se digerir. João Pedro teria sido visto entrando em uma rua estreita do centro. Bêbado que nem um folião num sábado de Zé Pereira nas Ladeiras de Olinda e não teria sido mais encontrado. João teria sido sequestrado, morto e enterrado na margem de uma BR na saída do Recife. João teria sido abduzido por alienígenas enquanto dormia. 


 Pego em pleno ano, transando com uma de suas vizinhas, uma senhora de quase 80 anos. João teria virado beato, mudado de nome depois de descobrir uma severa disfunção erétil de tratamento muito caro. João teria mudado para um sítio em Vitória de Santo Antão e, de tanta felicidade, teria até deixado de lado toda a tecnologia e hoje vive feliz, plantando melancia, bredo e milho e possui 13 filhos.  João tudo. Até sumir e eu não saber exatamente como proceder. Nem a conta no Bar da Fátima ele pagou.  Não a parte dele, claro. A minha eu já resolvi. 

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