Avaliação




Eu devia ter por volta dos sete ou oito anos. Estava na terceira série e lembro que a minha sala era a última do lado direito do Colégio Estadual Vila João de Deus, em Jaboatão dos Guararapes,  Pernambuco.  Eu acordava de dez pras cinco da manhã, minha mãe ligava o rádio na Maranata FM onde o radialista Rossano Márlio abria seu programa com a música Canção da Alvorada,  do disco Voz e Violão,  do João Alexandre. Era lindo. Eu ia comprar o pão antes de ir à escola e tava tudo resolvido. Era 1996.

A gente tinha uma só professora,  sentávamos na mesma 'banca' e tínhamos quatro disciplinas: Matemática,  Português,  Estudos Sociais e Ciências. Lembro que a gente era obrigado cantar o Hino Nacional,  o Hino da Bandeira e o Hino de Pernambuco todo dia antes de entrar. Até hoje sei as letras. Me serviram pra nada, a não ser torcer para a Seleção em dia de jogo, mas nem isso mais eu faço hoje em dia. Mas eu me recordo daqueles dias e de certa monotonia que nos cercavam.  



Um dia daqueles dias monótonos uma cena tirada de um filme de faroeste nos marcou: o vigilante (que a gente chamava de vigia e meu pai, também Vigilante, nos corrigia) matou dois bandidos em pleno recreio. Dentro da escola ficava um orelhão da Telemar (aquele azulzinho do comercial com a Ana Paula Arósio, eu acho) e  o vigilante era só um, trabalhava armado.

A parte em seguida eu não vi. Acho que já estava na sala nessa hora ou algo assim: com a desculpa de ir fazer uma ligação no orelhão,  os dois moços entraram no pátio da escola. Deram voz de assalto para o vigia, um deles puxou uma arma. Não deu outra: o vigilante baleou um dos indivíduos e, quando o outro puxou sua arma para o revide, o vigilante,  treinado, deu uma cambalhota digna de qualquer filme americano de policial e também derrubou o segundo moço.



Imagina a agonia. Um bando de criança no meio daquele tumulto. Eu lembro dos nomes de vários de meus antigos amigos. Fabiana, Valéria (que a gente chamava pejorativamente de Sibito Baleado, pois era gigante, enorme, muita alta para sua idade), Francisco,  Alisson. . . A Valéria tinha ido para uma vez no hospital por ter ingerido água sanitária de uma garrafa Pet pensando ser água comum. Teve que fazer uma lavagem estomacal. Quase morria. Eu e os meninos não gostávamos do vigilante justamente pelo fato dele sempre ajudar as meninas, dando dinheiro quando elas pediam para comprar lanches.  Entre as meninas, Janaína. Ela era praticamente uma mulher.  Linda toda ela.



Uma das meninas sentava a meu lado na sala. Ainda bebê de colo ela tinha assistido seu pai ser assassinato em sua frente. Ninguém sabia disso até aquela hora. Lembro dela entrando na sala correndo, desesperada. Literalmente berrando. Eu tinha sete ou oito anos e achava que ia morrer ali naquele dia. Mas os gritos de minha vizinha de banca é algo que até hoje eu me lembro. A menina escondida no canto, soluçando de tanto chorar, enquanto a professora, Waldenice Oliveira da Rocha, uma guerreira que fazia questão de lembrar seu nome (como faço agora, com o mesmo orgulho), se virava em trinta para nos acalmar.

Lembrei desse fato ao receber mensagens defendendo absurdos como liberação de armas para professores,  policiamento nas escolas, portas com detectores de metal e outros absurdos. Políticos pedindo armas em escolas onde não se tem nem merenda muitas vezes. Violência para enfrentar a violência.  



As escolas precisam de mais professores,  bibliotecas que funcionem, quadras cobertas, psicólogos,  terapeutas, professores de música,  grupos de estudos, grêmios estudantis e poder votar no diretor de sua escola. Se a gente pensar direitinho, temos é que desarmar ainda mais a sociedade,  combater mentiras, as sementes do ódio que foram espalhadas durante quatro anos pelo próprio presidente do país e repetir aquela lição que a gente sabe de cor, mas não bota em prática: prevenir no lugar de remediar. 

Comentários