Uns Gatos...

 




Esse é um relato (verídico em sua essência) é de alguém isento de qualquer tipo de apego ao determinado felino em questão, pouco afeito ao gracejo doméstico e inclusive padece de alergia só de passar perto de um exemplar do espécime. Dito de outra forma: realmente eu não gosto de gatos. 



Sansão era um gato preto, gordo, dado aos passeios de carro, idas ao veterinário, castrado, apreciador de ração cara e muito mimado. Como não ser? Sansão era tratado melhor que mais da metade das crianças de nossa nação e ele sabia disso. Cego de um olho quando filhote, Sansão havia sido adotado por Aparecida (Cida para os mais íntimos), uma engenheira elétrica solteira e concursada pela CELPE, ainda filhote e tratado como filho inevitavelmente. Cida era minha vizinha. 


O passatempo do gato era ficar no topo da escada, imponente, nariz empinado, olhando para todo mundo que passava. Duvido que Sansão tinha coragem, extinto ou necessidade alguma de pegar um rato, só pra variar. Aquilo rebaixada demais sua posição de nobreza. Eu chegava do trabalho por volta das nove e lá estava ele. 'Boa noite Sansão?' E ele me respondia. Sansão dormia cedo. Era o único gato que conheci que passava sua noite dormindo, possuía uma cama forrada com o jornal do dia (ai de quem colocasse um jornal do dia anterior pra ele se deitar. O bicho pegava. Literalmente), só bebia água mineral 'meia morna' e saia fantasiado de cachorro todo Carnaval. 


Aquilo era uma graça. Cida já tinha perdido três namorados (um por alergia) por incompatibilidade de gênio com seu felino. Não tinha outra: Sansão era seu filho e disso ninguém tinha a menor dúvida. O problema era que seu gato tinha desaparecido em pleno domingo. 'Coisa de dois minutos. Eu deixei a porta do apartamento aberta por trinta segundos e ele desapareceu'. Na segunda-feira o condomínio, a rua inteira e todos os postes de energia num raio de três quilômetros receberam um cartaz de Procura-se! Recompensa de R$300,00 para quem o achar. 


Na quarta-feira Sabrina, sobrinha de Cida, chegou para ajudar a tia nas buscas. Veterinária de formação, a jovem tinha aberto sua clínica inspirada na história de amor e dedicação de sua tia e seu gato e no incentivo financeiro da mesma. Sua presença ali sem dúvida iria ajudar a solucionar o problema. A moça talvez tivesse alguma tática. Nada. Até a sexta-feira as duas tinham ido em todos os 256 apartamentos dos 16 blocos do condomínio, prestado queixa na polícia, impulsionado algumas postagens nas redes sociais sem nenhuma resposta satisfatória. Sansão era inconfundível. Não tinha como trazer gato por lebre pra cima dela. 


Cida tinha pedido um filho no início da gestação. O pai do menino, seu primeiro namorado e candidato ao cargo de príncipe, tinha morrido num acidente de carro dois meses depois. Na mesma semana Sansão aparecia para preencher seus dias e sua vida, porque criar animal não é só um atestado de carência ou solidão. Aquele gato realmente era parte da família. Sobrevivendo na base do remédio para acalmar os nervos, a dor que Cida sentiu ao receber da portaria a notícia de que seu gato havia sido encontrado, morto, debaixo de um dos carros no estacionamento do condomínio no domingo de manhã, praticamente uma semana depois do início das buscas. Um minuto de silêncio, por favor. Só quem já passou por algo semelhante sabe o quanto isso dói. 



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Joninha era noiado de carteirinha. 27 anos e não fazia muita coisa da vida para, segundo ele, não estragar sua vista. Morava com a mãe, a dona Damiana, que vivia doente com seus ossos pedindo reposição. Dois joelhos novos, um pouco de tinta na cabeça e ela estaria novamente em forma. Aposentada, os vizinhos não faziam ideia do que Jonas fazia para se manter, ajudar a mãe dentro de casa, pagar as contas, comprar remédios e manter aquela tranquilidade obtusa, quase desagregadora que ele fazia questão de manter, quer fosse dia de chuva ou sol. 


Joninha não batia um prego numa barra de sabão. Passava o dia na esquina do condomínio fumando maconha, ouvindo Racionais e Bob Marley (claro que, para além do inglês do Bob, ele não entendia absolutamente nada do que aquelas canções queriam dizer) e, sempre sem camisa, exibindo seu corpo que cada vez mais só fazia crescer. Tentaram falar com a mãe dele, dar alguns conselhos, ver se ela tinha mais alguém na família que pudesse, além de ajudar a velha, colocar um pouco de bom senso naquele juízo.  


Depois da maconha veio o pó, mas Joninha não embarcou na parada. Achou a viagem um troço muito esquisito. Em uma tarde muito quente ele esqueceu de dar os remédios de sua mãe (que na verdade era a sua avó, que o pegara pra criar ainda recém-nascido, já que a mãe dele, sua filha, estava trancada lá no Bom Pastor e, viciada em crack, não iria se importar muito em assumir um terceiro filho, que seria mais um moleque literalmente sem pai), além de deixar a velha trancada dentro de casa e passar dois dias sumido do mundo alimentando a nóia. Disseram que Dona Damiana caiu da cadeira de balanço que estava e, como não tinha voz pra gritar nem força pra se erguer sozinha, ficou aqueles dois dias no chão do apartamento. Ali mesmo dormiu, ali mesmo mijou, ali mesmo quase morria desidratada e sem remédio, enquanto o filho/neto andava pelas quebradas gastando o dinheiro (que não tinha) com droga adulterada. 


O porteiro do prédio arrombou a porta do AP depois das suspeitas de que aquele silêncio era na verdade incriminador. Chamaram a PM, deram uma batida por quase todo o bairro mas mão acharam aqueles quase dois metros e cento e vinte quilos, sem camisa, muito doido de pó, cachaça, maconha, cola de sapateiro e ódio por todo o corpo pela humanidade. Jonas voltou pra casa, entrou pra igreja de Mórmon e passou exatos 17 dias cuidando de sua vida e da vida da avó, a qual ele chamava de mãe.  



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Rapadura era um gato vira-latas e sem dúvida devia ter algum tipo de problema emocional. Ele simplesmente se recusava sair de casa, mesmo com a porta mantida aberta. Meu Deus, se todo filho fosse assim. Mas agora Rapadura também se encontrava desaparecido. Sua dona, Raimunda, teria deixado a porta aberta (claro. Quem diria que um gato caseiro, belo, recatado e do lar, desculpem a piada sem graça, sei que o assunto é sério!) enquanto pendurava umas roupas para secar no varal. Rapadura apareceu dentro de uma sacola plástica, todo retalhado, todo o sangue drenado e com o pelo praticamente irreconhecível. Penduraram a sacola com o gatinho dentro, na área comum do condomínio, atitude essa que acharam ser a gota d'água. Algo de real, de concreto precisava ser feito. 



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Irmão Jonas não durou muito tempo na igreja, como era de costume e se esperava. Passa o porteiro do condomínio para o trabalho e lá está o 'irmão' Jonas bolando um baseado com um ventilador novinho do seu lado. Daqueles com um tripé, perfeito pra se colocar em qualquer lugar, quem sabe numa guarita, mera? A pessoa fica aí, passa o dia todo num calor desse. . . Faço cinquenta conto pro senhor. Trinta se quiser adiantar. Joninha tinha voltado ao seu hábito de ser um rapaz de sorte e começar a achar as coisas. Enquanto ela achava os animais se perdiam. O da vez era João Grilo, um gato meio siamês, batizado com ele nome em homenagem ao filme O Alto da Compadecida. Ligaram pra polícia. Não era possível que Joninha continuasse roubando, traficando e ameaçando os moradores, além de dar sumiço nos animais. Era o maior suspeito. 


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Pegaram Joninha no beco, voltando pra casa depois de uma pelada. Com ele os policiais não acharam nada além de uma caixa de fósforo (vazia) e isqueiro velho, mas como 'os home' eram amigos de um dos moradores a prensa seria grande. Ao lado do condomínio havia um grande terreno baldio da Prefeitura. Jonas foi encontrado três dias depois, todo quebrado. Levado para a UPA, depois de ter sido achado por uns moleques que costumavam jogar bola no local, Jonas recordava da voz do doutor explicando pra sua mãe a situação do moço: três costelas quebradas. Uma delas teria perfurado seu pulmão esquerdo e causado uma hemorragia persistente. Na agonia, na dor da despedida, ele lembra de patas tocando-lhe o corpo, línguas ásperas lambendo suas feridas e corpos peludos, minúsculos, com um estranho batimento (ou não) do coração lhe aquecendo o corpo, cercando como se um grande abraço, um grande lençol o cobrisse todo e ele dormiu. Duas semanas depois outro cartaz com outra foto de um outro gato estampava o quadro de aviso da portaria do prédio. Joninha era um bocado de coisa, inclusive amigo dos gatos. De todos eles. 




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