Morte num bar. . .

 



O telefone de Jorge tocou bem naquela manhã de domingo. Chovia bastante. Quem em sua sã consciência ainda usava daquela maneira o telefone.  O número,  esquisito. Um fixo. Não atendeu. Na terceira chamada resolveu arriscar. Vai que é algo realmente importante. Era seu médico.  Doutor Murilo.  Precisava falar urgentemente.  Poderia ser amanhã,  seu Jorge? O senhor pode passar aqui cedo? Precisamos mesmo conversar.  O nível de amizade entre Jorge e seu médico era tanta ao ponto que ele não aceitava ou não entendia os motivos que levavam seu amigo doutor a lhe chamar de Seu Jorge e não você,  tu. Intimidade é tudo. Uma tênue barreira que, depois de rompida, custa retornar. Mas Jorge já sabia. Dias atrás ele, à sua revelia,  teria feito alguns exames de rotina, exigidos pela nova administração no emprego. No outro dia de manhã,  cedinho, estava lá.  Consultório médico do Doutor Murilo:

-Não sei como dizer isso de uma outra maneira, então, vai lá: você vai morrer, Jorge.  E parece que vai ser bem mais rápido do que você imagina.



Tem 27 anos que Jorge mora no mesmo lugar, 27 anos recebendo cartas e tendo que ensinar/responder onde fica seu endereço.  25 anos que ele compra pão três vezes por semana na mesma padaria ( dez francês,  quatro carteira, quinhentas gramas de queijo coalho ou mussarela e dois doces, que é pra não engordar). 26 anos que sua esposa havia decidido não mais sair de casa nem falar com ele. Mais de vinte anos, era só nisso que Jorge conseguia focar naquele momento, e esse filho da puta inventa de estragar meu domingo.



-Você vai morrer, Jorge.  Seus exames de rotina ( que parece que não estavam tão em rotina assim) detectaram um câncer que se espalhou…



Jorge nem esperou seu médico ( e amigo,  por assim dizer) terminar. Levantou, ajeitou a cadeira,  enxugou uma lágrima descontrolada que havia conseguido fugir daquela fortaleza, e foi embora. 27 anos atrás,  Jorge, recém contratado, a esposa também empregada, recém casados, podiam até ostentar certa posição na sociedade.  E foi isso que fizeram, comprando um terreno e mandado construir uma casa enorme para a futura família.  Sua esposa grávida.  Agora ela não fala, nem com ele, nem com os móveis ou com a casa.  Isso tem 26 anos completos.


Maria Júlia era o seu nome e ela não superou perder seu único filho. Antes da gravidez o casal estava distante. Perder o bebê foi a gota d'água que faz transbordar o balde contendo uma vida inteira, os sonhos, depois fica pela casa aquele aguaceiro todo que, se não limpa faz escorregar quem passa, se não limpa destrói o piso, deixa mancha e mau cheiro em toda sala. Foi bem isso que aconteceu: o menino nascera com uma má formação.  Levado para a incubadora, não resistiu. Júlia voltou para casa, sustentou o luto,  fez o resguardo e depois, silêncio.  


Primeiro foram os pratos sujos se acumulando naquela pia minúscula. Parou de lavar os pratos. Todo dia era a mesma coisa naquela casa. Não dava mais. Acordar,  lavar os pratos. Fazer comida. Se ela não levasse as moscas tomariam de conta da sua sala de estar. O lixo do banheiro seguia o mesmo caminho.  Poderia até esbarrar que o marido não se dignava a recolhê-lo.  A água se acumulando no balde, gota a gota, até transbordar. Deixou tudo.


Em uma tarde se sentaram perto da mesa. Quase meio dia. Nenhum prato à mesa, nenhuma panela no fogão. Não havia cheiro de comida na cozinha.  Só a podridão.  O lixo. O barulho das moscas se alimentando dos restos na pia. Jorge não ligou. Já não ligava. Tomava goles e goles de álcool que o deixava entorpecido para encarar o dia. Ia trabalhar anestesiado.  No intervalo do almoço quase não comia. Quando seu estômago o alertava de que faltava algo (e isso estava rareando cada vez mais) Ia até uma lanchonete na esquina do trabalho e pedia um pão na chapa com um pingado. Café ouro ele já não mais encarava. 


Aquilo lhe deprimia, trazia a tona lembranças indesejadas, lhe tirava o sempre presente sabor do álcool, devolvia um gosto amargo em sua boca, coisa que ele queria fugir e fingir para sempre. Quando sua mulher lhe trocou pelo silêncio ele tentou encarar. Pediu desculpas, ergueu um altar ao herdeiro na janela da cozinha, tentou (e falhou. Miseravelmente) por mais de mil vezes devolver pra sua esposa sua alma morta. Por causa do álcool Jorge começou definhando. Além da bebida recorreu também ao fumo. Depois vieram os jogos de azar, esse meio que controlado. 


Nunca gostou de apostar. No dia que foi assaltado chegou em casa todo ensopado. Além do celular e da carteira tinha levado uma topada no batente da escada de casa. Muito chuva.  Tomou meia garrafa de vinho naquela noite depois do jantar. Quando ligou a TV a reportagem alertava para os perigos de se andar sozinho pelas ruas (um alto índice de assalto) e dos perigos da chuva. Riu alto. Muito alto. A presença do álcool parece que lhe devolvia motivos para sorrir. Até as piores piadas dos piores programas da TV aberta lhe arrancavam riso. E o aparelho de TV lhe fazia companhia.



-Você não pode fazer mais isso, Jorge. Sua situação é muito delicada. Com a quantidade de álcool que você tem consumido,  as poucas horas de sono, os muitos compromissos no trabalho e a alimentação quase restrita que você tem feito, me parece que só ajudam em seu planejamento em fazer a vida curta.  E não era bem esse o entendimento quando se falava que a vida era isso.



Não houve resposta. Acordava de manhã cedinho, comprava o pão na padaria, seguia para o trabalho,  voltava pra casa lá por volta das 17:30. A esposa em casa. Geralmente no quarto. Um dia até chegou a delirar confundido sua esposa com uma jovem que passou perto dele na rua.  Imaginou que a mulher bem que podia sair de casa toda vez que ele dobrasse a esquina. Mas não.  


Ele trazia sopa, canja de galinha, feijoada, pizza. Deixava em cima da mesa, tomava um banho e seguia para sua poltrona em frente a televisão.  A quantidade de pão sempre diminuía, sinal que Maria Júlia estava viva. Por diversas vezes mal se viam. Ela em seu quarto, ele sentado na poltrona com sua garrafa de álcool até pegar no sono em frete aquele aparelho.  


Jorge conseguiu se aposentar. Morreria apenas aos 96 anos e segurando a sua garrafa de pinga. Dizia.  Em uma outra manhã de domingo o telefone de Jorge voltou a tocar. Também chovia muito. As ruas alagadas pareciam mais uma ilha. Motivos não faltavam para deixar os moradores dentro de suas casas protegidos. Jorge resolveu não atender. Não seria possível que o Doutor Murilo viria com mais uma péssima notícia naquele dia de chuva. Ele precisava ir mesmo trabalhar em um dia de chuva como aquele? Deixou o telefone cansar.


 Quatro dias depois notaria que o pão costumeiro não havia sido mexido. Que a sopa de alho comprada na terça já era uma sombra apodrecida na mesa. As moscas tinham retornado ao ambiente, quase depois de seis anos sem usar um prato naquele lar.

Abriu a geladeira. Nada de novo. O mesmo pote de doce abandonado de dias e as garrafas de água vazias. Batei a porta.  Notou um post-it amarelo deslizando no ar até chegar ao chão. Nele, simples e direto:


-Eu vou embora, Jorge. Trate de se cuidar e não me procure.  



Foi até o quarto.  Pilhas e mais pilhas de livros de viagem, literatura francesa, enciclopédias, crítica de cinema, manuais de fotografia,  arte abstrata,  inúmeras biografias. Todos os discos da Gal Costa e da Elis Regina. A cama arrumada,  os lençóis trocados, as fronhas passadas, as cortinas abertas e limpas. O quarto parecia e cheirava a sonho de criança logo pela manhã.  Jorge viveu ainda muitos anos. Conviveu com sua doença a alimentando de egoísmo e de rotina. 


Parecia que ele é quem era o câncer.  Parecia que ele era quem havia parado no tempo, como aquele relógio de parede na cozinha, presente de casamento que nunca havia visto pilhas novas da primeira parada até aqueles dias. Na rotina de Jorge ele incluía agora uma visita a um bar, duas quadras perto de sua casa. 


Ia lá pelo menos três ou quatro vezes na semana e possuía uma conta sempre organizada e quitada a cada quinze dias. Dizem que via sua ex-esposa andando distraída por aquelas bandas. Não se sabe se era mesmo verdade ou só mais um de seus muitos vultos de sua vista. Partiu numa linda tarde ensolarada de sábado.  A Seleção Brasileira enfrentando uma eliminatória pra Copa e ele cabisbaixo numa mesa do canto, como de costume. Ninguém nem notou. Não chamou atenção.  Jorge já tinha morrido fazia tanto tempo. . . 




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