A vingança do Edifício Laguna

 



  Era por volta do meio-dia.  Joana tinha acabado de acordar, desligou o ventilador, abriu a janela e seguiu para o banheiro para começar mais um dia apesar do atraso. Depois de uma semana de correria era preciso relaxar. Na noite anterior tinha saído com suas três melhores amigas, Letícia,  Alicia e Helena.  Foram para um bar novo no Recife Antigo, mais badalado do que realmente bom, mas que deu pro gasto naquele dia. Quando acabou a música ao vivo, uma interminável mistura de sertanejo universitário com Jorge Vercillo, pediu um uber, se despediu das amigas e foi se deitar tranquilo,  não antes de revisar um relatório financeiro para a próxima semana,  responder seus e-mails e tomar um chá. Esse era seu melhor e mais novo momento: 'tomar chá para desintoxicar sua aura de péssimos fluidos de energias indesejadas' e assim fez. Ao acordar, aquele tédio.  Fazia calor no coração do Recife. Depois de um almoço requentado no micro-ondas e uma conferida na agenda pro resto do fim de semana resolveu cair no sofá.  Tinha duas dúzias de séries na fila esperando maratona e não sabia por onde começar.  Aí começou a vingança.  E ela não tinha nada a ver com aquilo. Mas não havia como voltar. 

Era tudo muito tranquilo no Parque dos Manguezais.  Joana mal fazia ideia de que sua vizinhança era uma zona de proteção ambiental.  Joana era formada em TI e se dividia entre a atenção às novas amigas, o trabalho de gerência em toda uma grande rede de lojas de marca famosa em todo o país e sua tese de mestrado que já começava  a lhe tirar, por vezes, o sono. Joana tinha vindo do RJ cuidar do pai antes dele partir três anos atrás, de câncer. Filha única,  juntou a grana que seu pai, primeiro-sargento da Marinha, teria lhe deixado.

 Em vida o Seu Tadeu era considerado muito meticuloso. Quando sua esposa, Vera, morreu de câncer,  com apenas 33 anos,   decidiu juntar uma grana para ajudar a única filha caso lhe acontecesse. Tiro certo. Aliás,  a única certeza da vida é que ela um dia chega ao fim, e o encontro com a morte, a dor do luto, a presença da Indesejada das Horas era algo que sempre permeou aquele lar. Joana havia terminado a graduação e um namoro de mais ou menos seis anos (que não iria muito mais tão longe), pedido suas contas na loja de informática em que trabalhava e desembarcou no Recife para cuidar de seu velho em seus últimos dias. E foram bons. 

Após o velório, que ela conduziu de perto e com todas as exigências que o seu velho pedira (bandeira do Sport Clube do Recife,  a sua cópia da moedinha número 1 do Tio Patinhas e suas meia de viagem favorita), vendeu o AP do pai, na agonizante beira mar de Boa Viagem e foi procurar um lugar só,  seguro e seu. Foi numa dessas buscas pela Internet que ela visualizou um anúncio do recém inaugurado Edifício Laguna, 'perto da natureza e distante o suficiente do caos do centro da cidade'. 'Perfeito pra você que é ousado e deseja sair da rotina!'. Aquele cartaz só faltava chamar pelo nome. 

Não deu outra: ligou,  agendou uma visita e depois de resolver toda a burocracia estava de casa nova, novo emprego, saindo com um cara bacana, apesar de não ter certeza se valia a pena se relacionar com alguém de seu convívio de trabalho ou mesmo se era hora iniciar qualquer tipo de relação. Estava mesmo disposta a começar uma relação consigo mesma, apesar de não saber disso ainda naquela altura. Os acontecimentos que se seguiram nos meses seguintes àquele novo começo foram decisivos para lhe abrir os olhos. 

O Edifício Laguna prometia tudo. A propaganda assegurava paz, sossego,  encontro com a natureza.  . . Tudo sem deixar de lado aquele 'pulo' do centro. O preço era em conta. Não era tão caro ao ponto de chamar seus moradores de elite. Na primeira semana de moradia, um detalhe: por volta do meio-dia um cheiro terrível invadiu os apartamentos.  Tudo começou por ali. Por volta do meio dia aquela agonia tomava de conta da mente de Joana como um despertador indesejado,  tipo aquele que você esquece que foi você quem lhe programou. Aquele cheiro de maré,  de esgoto, de peixe morto e maresia invadia a sala, se espalhava na cozinha, pelos cantos do esgoto, pelo ar-condicionado e até pelo teto. Uma lástima.  Uma agonia severa que espantava o sono. De repente o suor parecia cera, óleo de comida grudando a roupa na pele, dor de cabeça, febre, aquele barulho fininho no fundo do ouvido, sabe? O paraíso durara pouco. Os moradores do Laguna tinham sido enganados. 

Justiça.  Abaixo assinado. Petição para justiça. Advogado. Tiveram que cancelar o protesto e a manifestação com a presença da Rede Globo e tudo. "Se for questionar a justiça pode dar merda". A área ambiental era motivo suficiente para enquadrar todos os moradores. A empresa responsável havia sumido. O vendedor teria sido visto na Suíça antes de apagar suas redes sociais e desaparecer com sua amante. O pai de Joana estava envolvido num esquema, coisa antiga. A Marinha dava seu jeito e os documentos para liberação para construção civil apareciam. "Melhor não catucar", aconselhava um dos advogados.  Ao meio dia e às onze da noite o aroma invadia as casas. Diariamente.  Não havia nada a se fazer: incenso, vela aromática,  bom ar… nada. Era como se um ser em avançado estado de putrefação invadisse aquele Edifício numa espécie de Praga dos Primogênitos aos avessos. Já acostumados, veio a pandemia. 

Nos primeiros dias de quarenta a coisa foi feia. Depois só piorou. Joana passou a ver e ouvir seus vizinhos. Saber seus nomes. Começou o serviço remoto. Todos os streaming assinados, pilha de livros para ler finalmente saindo do lugar, tempo pedido pro 'boy' e  parecia que não seria tão difícil assim encarar aqueles dias nublados. Mas a vingança continuava. Uma camisa sumiu do varal. Novinha. Aliás, as coisas começaram a sumir no Edifício Laguna.  De meio dia até umas 15:30 as janelas tinham que ficar fechadas. O ar desenrolava a resistência.  'Ninguém soltava a mão de ninguém'. O elevador começou a falhar. Chamaram a manutenção.  

Na demora, sobrava aos entregadores dos aplicativos subir as escadas. A resposta no grupo do zap para os moradores era que, devido toda demanda do lockdown as empresas estavam sobrecarregadas. Passaram a usar o elevador de serviço.  'Um absurdo aquilo'. Numa sexta feira uma coisa chamou atenção de Joana. Ao abrir a porta para receber uma pizza notou um estranho barulho no final de seu corredor. Uma sombra veloz, um vulto,  algo rastejando (podia jurar) carregando alguma coisa por entre o cantinho da parede. Podia jurar que aquele barulho era de latinhas de alumínio se arrastando ou sendo arrastadas. Na mesma semana deram conta de diversos furtos em todos os andares. Nada de muito valor ou relevância: camisetas penduradas nos varais, latinhas de alumínio,  um batom de uma das jovens moradoras e até alguns pares de sandálias deixadas 'de vacilo' nas portas dos apartamentos. 

 Foi preciso chamar uma assembleia online para debater o tema, tomar alguma atitude.  Deu em nada. No meio da assembleia, aquela confusão.  Sobrou para a síndica ser chamada de devassada,  ameaçada de morte por uns dois moradores diferentes,  muito bate boca e palavrão.  Fulano chamava Beltrano de corno, acusava a mulher do alheio de arrastar asa pro novo porteiro, o bonitão,  e reclamar que aquele residencial, na verdade, havia se tornado um 'antro de larápios,  fofoqueiros e observadores do alheio'. 

-Pior você, Fernando, que dá um de corno mas é vindo! Pensa que eu não sei do teu esquema com aquele boy da lanchonete que vem bem umas três vezes na semana aqui, entregar pastel quando tua mulher sai pro trabalho? 

 -Nos poupe, meu Deus! Em plena quarenta e vocês trazendo roupa suja pra lavar aqui na assembleia? Minha gente… 

Nada feito. Mal se terminou a frase e a Internet caiu junto com o escuro. A energia se foi. 

- Liga pra Celpe!

 - É Neoenergia agora. 

- Liga logo pra essa porra! Que importa o nome agora.

(. . . )




Três Dias para uma equipe checar o edifício presencialmente.  Talvez mais. 'Tava um caos em todo estado'. Nada de Internet. O provedor fora chamado, os técnicos subido e descido por todas as dependências do Laguna mas ninguém conseguia encontrar a origem do problema. Aí que vem a desgraça: imagine você passar três dias sem Internet em casa? A luz tinha voltado mas caia constantemente.  Agora, junto com a fedentina, as coisas desaparecendo de dentro dos apartamentos, a energia e a Internet caiam regularmente.  Joana perdeu a TV e o ar-condicionado nessa brincadeira.  O auge foi em setembro de 2021. 4 dias inteiros sem energia e todo tipo de xingamento já se fazia escasso naquele prédio. Mas a coisa poderia piorar ainda mais.

Ao meio dia nesses quatro dias sem energia as janelas se abriram para o mundo. Não havia outro caminho.  O apartamento de Joana virou campeão de incenso. Joana morava no 302 do 8° andar. O Laguna ostentava 15 andares, academia, salão de jogos, vestiário coletivo, quadra de vôlei,  tênis,  uma mini pista de Cooper, duas enormes piscinas e um salão de festas. Não era pra qualquer um. 'Paga-se caro pela paz da natureza', diziam alguns moradores. Agora, sem energia,  no calor exorbitante do Recife, as janelas eram disputadas. O vizinho de cima de Joana fumava um cachimbo terrível.  A fumaça descia para Joana,  misturando-se com o incenso,  deixando ela numa brisa daquelas. 

No AP do lado direito alguém criava uns dois cachorros. - Que guerra! No lado esquerdo um casal recém casados curtiam uma lua de mel. Por conta da quarenta decidiram não viajar. Passavam o dia maratonando série, pedindo besteira no ifood e gemendo. Sim. Gemiam dia e noite. Faziam inveja. As frases já estavam ficando repetidas mas eles compensavam com entusiasmo. Ele tinha três apelidos que valiam a pena: coladinho, energético e boladinho.  Não pergunte explicações.  Ela era mais simples: era chamada apenas de amorzinho.  E haja gemido o dia inteiro.  Não sei como conseguiam com um calor daqueles. A vista de frente do Laguna era coisa divina. 

Um manguezal verde, bonito, espalhando-se por todo lado. Onde a vista ia dava pra se ver o verde. O verde e o rio. O verde e uns barcos passando de vez em quando.  O verde e a lama do mangue, que parecia se mexer naquelas tardes. Quando se resolveu a questão da eletricidade, o ritual de se encostar nas janelas continuou.  Nessa altura o cheiro do mangue, das fezes misturando-se com o lixo do manguezal parecia não incomodar mais os moradores. Nem ligavam mais. Foi numa dessas tardes, com um cigarro na mão e decidindo se iria voltar ou não ao terrível hábito que levou sua mãe e seu pai que Joana avistou algo estranho. O mangue parecia mesmo se mexer. Mais do que isso, repleto de caranguejos,  aquela lama de frente para o mais belo empreendimento do Recife parecia agora ter se tornado uma espécie de plateia para as criaturas do manguezal.  

O Laguna, a pista, uma grade separando o mangue e os prédios e um ritual que agora, não só intrigava os moradores, como também assustava. Um a um, os caranguejos se perfilavam de frente ao Laguna e pareciam assistir, esperar alguma coisa. Visto de longe, aquela marcha dos caranguejos parecia ensaiada. Uma onda preta de lama se mexendo, brilhosa e só aumentava. O cheiro também aumentou. Durante a noite a coisa parecia ser pior. O assunto virou destaque no grupo do zap. Arnaldo, do térreo,  era quem mais falava sobre o assunto. Biólogo, não entendia aquele fenômeno.  Insistiu que deveriam chamar uma emissora de TV para fazer uma reportagem sobre o tema, mas foi logo desencorajado.

    -"Depois da palhaçada que a gente fez aqui? Qual equipe de TV vai querer vir aqui depois do barraco que alguns fizeram?"

       - "A culpa é do Seu Belo, aquele corno! Foi ele que inventou essa história de abaixo assinado, protesto, botar a boca no trombone,  enquanto a mulher dele descia todo dia pra buscar água na portaria!"

       - "Gente, pelo amor de Deus! Já pedi pra evitar o desrespeito no grupo! Vou ter que excluir vocês se voltarem com isso de novo!"

       - "Seu Belo nem WhatsApp tem, bicho!"

Aí foi tudo de novo. Trezentas mensagens, quinze áudios só na última hora depois dessa treta e uns vídeos de mensagem bíblica e fake news sobre o Apocalipse. Ou seja, nada de novo no fronte. E Joana ria. Ria bem alto enquanto  ouvia Ave Sangria e usava um binóculo comprado via aplicativo para espiar a movimentação do manguezal. Ela ria do grupo porque, no fim das contas, ela gostava era mesmo da treta. Queria nem saber. Curtia era os coroas lavando roupa suja no grupo do residencial. Era um aperitivo naqueles dias onde nada acontecia.  

A única aparente novidade naqueles dias foi a estreia da CNN, mas quando viu um cara branco de olhos azuis se dizendo jornalista falando mal dos gays logo pela manhã decidiu não dar nem bola pra aquilo.  Melhor olhar o grupo do zap do Laguna.  Todo mundo era crente, todo mundo era corno, todo mundo era educado ao extremo. Teve gente que pediu pra adicionar familiares, amigos, conhecidos, só para verem a treta rolar. Eram dias difíceis.  Assistir série,  ver as lives dos artistas bêbados,  dos anônimos falando sozinho, se indignar com as merdas que o presidente falava cada vez que abria a boca e ver o povo do grupo brigando. 

Foi aí, num sábado, agosto de 2021, que o bicho pegou. 

 Naquele dia o Edifício Laguna amanheceu vigiado. Aquela mancha negra, mistura de lama e patas de caranguejos olhando para o prédio como que apenas esperando uma ordem. E a tensão só aumentava. Silenciosamente a nuvem de crustáceos se avolumavam.  Ninguém notou. Envolvidos em suas maratonas de seriados, suas lives ou reuniões remotas, os moradores do Laguna não se preparam para aquele repentino ataque. Apenas o biólogo Arnaldo e Joana pareciam se preocupar com aquela estranha movimentação.  Arnaldo tomou coragem e ligou pra vizinha. De suas janelas ambos dividiam suas atenções ao ocorrido. 

-Isso não é  natural, Joana. Eles parecem uma orquestra ensaiada, um exército em dia de desfile cívico.

-Pior que nem adianta falar com os moradores. Se colocar no grupo vai virar motivo de briga. . .

-Ou de piada! Eu sei. Tentei ligar para meu orientador do mestrado, mas ele não está nem atendendo. Parece que saiu do país. 

-E pra televisão,  reportagem,  algum jornal? 

-Tentei. Parece que há um alerta no nome Laguna em toda a mídia.  Simplesmente não se pode falar do edifício em nenhum lugar. E depois daquele protesto acho ainda mais difícil nos darem algum tipo de atenção.  Não era seu pai que tinha uns contatos lá fora? Ele não era da Marinha? 

-Sim. Mas é melhor não falar sobre isso. Aliás,  isso não tem nada a ver com essa patrulha de  caranguejos em nossa frente. E eles já estão aí tem quantas horas? 

-Tá bem. Não está mais aqui em falou. Eu tirei umas fotos e enviei para um amigo meu, biólogo. Especialista em Manguezais. Ele bateu o telefone na minha cara e me bloqueou. Fiz questão de fazer os registros, mesmo que não encontrem nada do que estamos vendo em qualquer canto da internet daqui uns anos.

De repente a energia faltou novamente.  Era meio dia. Um barulho conhecido de Joana voltava a lhe chamar atenção.  Alguma coisa era arrastada no corredor. Ao abrir a porta, um capacete literalmente corria em direção a escada, rolando prédio abaixo. Uma caixa vazia de pizza passava em sua frente em seguida. Três caranguejos arrastavam a caixa na mesma direção.  No final do corredor um jovem entregador de aplicativo agonizava ajoelhado enquanto dezenas de caranguejos cortavam seu corpo, arrancavam pedaços de seus braços,  dedos e pareciam morar dentro dele, entrando e saindo de suas entranhas.

-Foge daqui moça!

 O grito de Joana ecoou e explodiu por toda a vizinhança.  Lá fora, aquele deserto. Nos apartamentos,  incredulidade. Era só mais algum maluco perdendo a cabeça, entrando em crise, soltando os cachorros por conta da pandemia. Não era fácil realmente.  Joana bateu a porta, trancou tudo, colocou o sofá escorando a porta. Correu pro telefone. Abriu o WhatsApp.  Ligou pro vizinho. Arnaldo morava no térreo.  O telefone só chamava. Ligou do telefone. Nada. Olhou pela janela. A cena parecia impossível de se imaginar. Quase sem carros passando na pista,  as ruas na vizinhança também vazias, a quarentena mantendo as pessoas em seus lares, com medo da morte,  medo do vírus,  medo de um golpe perpetrado pelo próprio presidente, pareciam não se preocupar com aquele que era só mais um prédio invadindo a paisagem da capital do estado. Os próprios moradores pareciam não se importar. 

Os caranguejos atravessaram a pista, tomaram a rua, pularam o pequeno muro que abria espaço para 'a vista completa do mais novo empreendimento no coração do Recife' e invadiram o edifício.  A quantidade daqueles seres era tão grande, tão inumerável que derrubaram o muro em sua passagem forçada. Joana ligou para a portaria. Silêncio.  Mandou um áudio para o grupo dos moradores.

-Eu sempre soube que essa moça era uma drogada…

-Esse povo jovem de hoje é tudinho assim…

-A culpa é do PT!

-Pra igreja ninguém quer ir. Aí fica tudo assim! 

-É muita falta do que fazer, gente! 

-Mulher sem marido é assim…

-Ataque de caranguejo, dona? Onde tu arrumou um bagulho desse que eu tb quero…

 A porta de Joana parou de ser empurrada. Os arranhões também pararam. Aquele calor, o susto, a imagem do jovem entregador com os olhos arrancados. . . Tudo aquilo foi demais pra si. Apagou.  Aqueles dias de pandemia a esperança duelava com o medo todo dia. Quando não estamos no controle das coisas tudo parece desandar. Impotentes, as notícias ruins viam da TV, do rádio ou pelos aplicativos. Um dia de notícia ruim todo dia. Mortos aos milhares, mentiras, desinformação, calor e stress. Falta de oxigênio,  hospitais lotados, parentes morrendo. Aqueles que podiam fugir daquela terrível realidade o faziam. 

Para mais da metade dos moradores do edifício Laguna a coisa que mais lhes tiravam do sério eram os pratos para lavar, ter que varrer a casa, descer para jogar o lixo e aquele calor, aquela fedentina insuportável.  As tardes nos escritórios foram substituídas pela comodidade do Home Office. As séries eram maratonadas,  os livros, Mangás e quadrinhos comprados aos montes na Amazon.  Entrega rápida e veloz garantida. As pessoas estão madrugando nas filas da Caixa Econômica? O auxílio emergencial vai salvar a economia,  ajudar os mais pobres, garantir o fluxo dos bens de consumo, aquecer o mercado, dar lucro para os empresários? E a cloroquina? A vacina? A CPI da Covid? Isso não importava. 

 Não chegava no Edifício Laguna. Não era assunto entre os moradores nem no grupo do zap. Aliás, uma das poucas regras do grupo levada a sério por todos, sob pena de exclusão do grupo,  era o de 'não se falar de política ali'. Podia se falar sobre tudo. Chamar todo mundo de corno e de vindo. O filho de um dos juízes mais conhecidos do estado vendia cocaína na cara dura no grupo sem ninguém dizer nada; só não se podia falar de política ali. Nem do fim do mundo, como tentou Joana inutilmente.  

Por volta das duas horas da tarde se ouviu o primeiro barulho. Os xingamentos pela falta de energia e os xingamentos entre janelas deram lugar ao desespero. Podemos dizer que alguém tentou conferir aquilo que estava realmente acontecendo,  que de repente passaram a dar razão aos alertas 'daquela menina magra metida a besta', 'aquela carioca safada' lá no grupo do prédio mas não.  Não dá pra saber. Também não dá pra saber se a vingança aconteceu depois do segundo ou do terceiro estrondo. Não dá pra saber se foi antes ou depois das seis ou ainda de tarde, com o sol a pino. O que se sabe, ou pelo menos se ouviu falar na boca miúda,  é que o edifício Laguna foi tragado para dentro da terra. 

Que aqueles caranguejos cercaram o prédio e começaram a escavar as bases do edifício.  Ao mesmo tempo, os apartamentos eram invadidos pelos crustáceos ferozes que, número após número, saíram dando cabo dos moradores de cada um daqueles apartamentos luxuosos. Depois de muito cavar a lama do manguezal começou a surgir nas bases do imponente Laguna. Eram esses os barulhos e estrondos que se ouviram. Era o mangue surgindo e retomando aquele espaço enquanto a fedentina se espalhava pela vizinhança com ainda mais força. 

Os moradores dos prédios vizinhos (dizem), apenas fecharam as janelas. Alguns aumentam o som de suas casas. Era só mais um barraco promovido pelo Laguna.  'Povo baixo'. 'Rasteiro'... e enquanto o Laguna era engolido pela lama do mangue, os gritos dos vizinhos eram abafados ou ignorados pelas maratonas das séries,  alguma debate entre direitistas fingindo seriedade na CNN ou mais uma sessão de sexo sem vontade para preencher o vazio e matar o tempo naqueles dias tão vazios e sem graça.  Para alguns. 

Joana despertou por causa da claridade. Uma dor de cabeça sem precedentes. Tentou lembrar do que aconteceu.  Não conseguiu. Estava deitada sobre um colchão de frente para o que era agora uma nova (ou antiga?) área daquela área de preservação ambiental.  Numa tentativa de recompor aquilo que teria acontecido alguns lampejos apareciam, fragmentos de algo que não parecia fazer sentido… os caranguejos lhe arrastando do seu apartamento,  um ser feito de lama, restos de lixo e flores lhe colocando naquele colchão,  os caranguejos retomando aquilo que poderia ter sido uma procissão,  seu enterro, descendo as escadas do Laguna enquanto os vizinhos corriam desesperados e eram mortos pelas patas velozes e certeiras daquelas aranhas da lama. 

Ela colocada no que antes era parte do jardim do edifício, aquele ser fétido vindo em sua direção,  se abaixando ao seu lado, a voz de seu quase amigo Arnaldo como um sussurro esforçado: 'Eles vão me levar. . . Pedi para pouparem sua vida. . . Que não precisava cobrar dos filhos as desgraças de seus pais.  Vá embora. . . Não fale. Esqueça que aqui você viveu'. O barulho do Laguna em seus últimos suspiros e um novo apagão.  

Joana fugiu do Real Hospital Português no Recife depois de ser internada para os primeiros cuidados. Dizem que nem a polícia conseguiu lhe tomar qualquer tipo de depoimento.  Sumiu. Assim como o edifício Laguna.  Pode procurar na Internet.  Duvido que qualquer citação,  qualquer referência, foto ou nota de rodapé falando sobre um prédio inteiro que simplesmente sumiu da noite pro dia em pleno Recife,  com todos os moradores dentro inclusive.  Os moradores do entorno fazem silêncio quando perguntados pelo . . .




Comentários