Agenor, o Santo. . .

 




“Seu Agenor era um homem muito bom”. Todo ano, lá pelas bandas de 22, 23 de dezembro, seu Agenor realizava sua tradicional oferta de fim de ano: ele descia com seus 170kg e, ajudado pela sua bengala importada da Itália,  ia até sua agência da Caixa Econômica no centro do Recife, retirava a exata quantia de R$1000, toda trocadinha em células de R$20, R$50 e R$100 e voltava para seu espetáculo de Natal. 

Dizem que seu Agenor era incrédulo quanto ao Plano Real e em meados de julho de 1994, quando o projeto foi lançado,  ele não deu 3 meses para aquela “invenção esquerdista dar com os burros n’água”. Em dezembro daquele ano ele retirou seus R$1000 de sua conta, pediu ao jovem do caixa o dinheiro trocadinho e inaugurou sua ação de  caridade. Todo ano, perto do Natal, seu Agenor botava a cara na sua janela e soltava para os transeuntes a exata quantia de R$1000 a quem estivesse passando. 

“Seu Agenor era um santo”. Em meados de 1964 Agenor Francisco de Melo Filho assumiu uma vaga em uma das agências da Caixa Econômica no Recife. Dizem que seu pai, militar reformado mas cheio dos contatos, teria solicitado a paga de um favor naqueles anos tão conturbados. Assim o filho,  Agenorzinho, assumiu o cargo sem precisar pedir licença a ninguém. Em 1994, quarenta anos e cento e cinquenta quilos a mais, já sem condições de dirigir seu próprio carro ou mesmo sustentar seu peso, pediu aposentadoria. “Já tinha visto de tudo naquele país. O país não daria certo” sempre dizia.

Aquele ritual de distribuir mil reais todo mês de dezembro não tinha nada a ver com caridade. Era mais a paga de uma prenda que ele teria feito consigo mesmo e perdido vergonhosamente.  O Plano Real, de Fernando Henrique Cardoso e  Itamar Franco parecia mais promissor do que o chamado Milagre Econômico,  de quem Agenor era entusiasta ferrenho. E assim foi. Assim fez. Todo ano, perto do Natal ele se dirigia ao centro de sua janela, arreganhava os vidros e as cortinas e soltava as notas sem olhar a quem as recebia, se caiam na beira mar levada pelo vento ou se havia briga por uma nota de cem. Uma vez uma criança foi pisoteada. Outra ocasião, uma senhora teve o braço quebrado na disputa por uma cédula de vinte. Outra vez foi um carro que atropelou uma professora enquanto ela atravessava a rua atrás de uma nota de 50 que o vento levou. 

Não importava. Os jornais, as revistas, reportagens da rádio e da TV já haviam exaltado e registrado tão enorme caridade. “Se Deus tocou em seu coração e a maneira dele distribuir aquele dinheiro era daquele jeito, quem éramos nós para questionar? Cada promessa deve ser paga como lhe foi feita!”. Mas não era bem assim essa benevolência toda. 

"Seu Agenor era um filho da puta!" No início dos anos 2000 a coisa já esquentava no apartamento do velho Agê, como era chamado entre seus velhos amigos militares, bancários,  bicheiros, advogados, políticos,  jogadores de futebol, prostitutas de luxo, pastores evangélicos… Agenor ajeitava todo seu apartamento,  pagava uma mixaria a mais pra sua faxineira pra ela mudar todos os móveis de lugar da sala onde ele receberia seus visitantes para um pequena orgia solidária: cada um de seus convidados se revezavam na escolha das notas para serem jogadas da janela do anfitrião. Antes, claro, escreviam os mais torpes palavrões e frases nada cristãs para preencher a noite dos transeuntes que por ali passavam e se aventuravam na espera de pegar qualquer nota de R$10 ou de R$20. A cena era nojenta. Aqueles idosos brancos, tossindo de tanto rir, quase tendo um ataque cardíaco,  bebendo champanhe importada enquanto sorteavam quem seria o próximo a 'soltar seu tiro', sua 'contribuição para o brazil'. E o ritual era o mesmo: Agenor descia de seu apartamento,  ia até sua agência, retirava os mil reais e separava as células em uma bandeja de prata separada só para deixar exposto na mesa do jantar sua sobremesa. Se algum de seus amigos colocasse a mão no bolso para pegar a carteira seria expulso imediatamente.  Certa vez um juiz aposentado, Ronaldinho,  vizinho de porta de Agenor desde a infância,  ousou jogar pela janela um cheque de dois mil reais previamente guardado em seu bolso. Pra quê ele fez aquilo? Agenor praticamente o expulsou de casa, aos berros, gritando que aquela era sua diversão e ninguém podia copiar de qualquer jeito. 

As menções honrosas, as notas nos rodapés dos jornais locais e as homenagens dos políticos de todas as matizes ideológicas só aumentavam. Quando Lula ganhou a eleição para presidente, Agenorzinho quase tinha um troço.  No final de 2002 seu coração quase parava. Naquele ano trabalhou bastante nas eleições locais. Apoiou 7 candidaturas (todas vitoriosas) para deputado estadual e 5 deputados federais. Recebeu tanta gente em casa, fez tanta ligação, chantageando adversários,  articulando entrevistas, notas nos jornais, vendendo escândalos familiares para derrubar opositores, dormiu pouco, comeu menos, bateu boca com marqueteiros que juraram saber mais que ele. Todos errados. Passado o primeiro turno o corpo pediu arrego. No segundo turno já sabia o resultado. 'Ninguém Ameaça o Lulinha e o Lulinha não ameaça ninguém'. 'Desse aí não precisam esperar outra coisa. Podem confiar'. Depois de dois AVCs teve que colocar duas pontes de safenas. Deveria parar de tomar seu whisky.  'Jamais'. Deveria maneirar na gordura. 'Tá certo'. E parar de vez com o viagra, medicação essa que ele fazia uso assim que seu uso colateral veio a público em 1998. Não fez questão de abandonar o azulzinho. Tinha sido casado seis vezes. Viúvo uma vez, divorciado quatro e tinha uma ex dada como desaparecida pela polícia por razões desconhecidas.  Dos 8 filhos e 16 netos, absolutamente ninguém vinha visitá-lo.  Recebia nem presente. Parou de mandar cartões de Natal e aniversário quando os mesmos começaram a ser devolvidos aos destinatários.  

"Agenor era um crápula cornudo". Naquele dezembro de 2002, mesmo sem nem conseguir respirar e com quase os dois pés no tapete da frente da casa do capeta, ele não deixou de realizar seu ritual de fim de ano.  Nas capas da Folha de Pernambuco e no Diário a matéria (paga) registra a volta por cima do 'maior coração de Boa Viagem, agora espírita'. Todo de branco,  a foto mostrava uma pequena multidão de mãos erguidas esperando literalmente cair do céu o trocado para animar a ceia daquele ano. Os repórteres até ouviram os participantes daquela ritual macabro, alguns já devotos daquele suplício,  como seu Climércio, que mesmo sendo porteiro do prédio de Agenor estava ali todo ano na noite das células voadoras. O porteiro nunca tinha visto o benfeitor pessoalmente,  mesmo sendo porteiro ali havia mais de 20 anos. Perguntado sobre as mensagens escritas nas células ele desconversou.  'É o jeito brincalhão dele; se reparar direitinho, ele nem precisava fazer isso pra gente. Se faz é pelo fato de ser um verdadeiro homem bom'. Claro que a informação dos xingamentos nas células como 'compra camisinha que hoje eu vou comer o cu da tua mãe' e 'se você chupar minha rola eu te dou mais uma nota dessa' foram omitidas das reportagens dos jornais. 

Em 2003 ele inovou.  Depois de uma recuperação rígida e novos hábitos alimentares, dois dias de aulas particulares com um personal trainer ele decidiu não entregar células,  mas moedas de R$1,00, R$0,50 e R$0,25. Foi um massacre. Climércio, o porteiro, teve os dois braços quebrados na disputa. Entre os xingamentos e os gritos da multidão,  que naquela hora se faziam cerca de quatrocentas pessoas, dava para se ouvir as gargalhadas e os xingamentos de Agenor e seus amigos lá de cima. 

Veio a pandemia e Agenor passou da melhor maneira possível.  Como não saia de casa, não recebia parentes ou amigos, passou longe de correr o risco de qualquer contágio.  2020 e 2021 foram os anos de maior repercussão de seus atos caridosos. Sempre com a camisa verde e amarelo da CBF ele foi assunto na boca do povo e, de novo, claro, nas manchetes devidamente editadas. Em 2020 tiveram que chamar a PM para conter a multidão ensandecida pela situação da pandemia e pelo boato de que naquele ano seriam 'soltas no ar' não mil, mas 3 mil reais, todas notas de 100. Mentira. Os mesmos mil reais divididos em notas avulsas e os mesmos xingamentos escritos. O Delegado tentou acusá-lo de estar contribuindo para quebrar a quarentena.  Foi transferido de delegacia e quase exonerado.  No relato, a acusação de ter visto, entre outros absurdos, os relatos de que Agenor e seus amigos cuspiam lá de cima nas pessoas enquanto xingavam com todos os palavrões do mundo e em vários idiomas. 

Dezembro de 2022 Agenor finalmente bateu as botas. Dessa vez de puro desgosto. Seu candidato ao Governo do Estado não tinha dado nem pro gasto no primeiro turno e o presidente tinha passado vergonha nas urnas mesmo usando a máquina.  'Com tudo na mão e o homem nem pra se reeleger?'. O coração não aguentou dessa vez. Nas notas de pesar dos jornais, a idade do velho Agê não batia. Uma coisa era certa: ele tinha passado dos 100 anos. No seu enterro, algumas coroas de flores, pagas por ele antecipadamente  e nenhum ser humano se quer. Apesar disso, na manhã de Natal daquele ano apareceu em sua lápide no cemitério de Santo Amaro moedas de R$0,25, R$0,50 e células de R$2,00 devidamente rabiscadas com ofensas, talvez endereçadas para o mundo do sobrenatural e uma pixação em azul, contrastando com o preto luminoso da lápide com os seguintes dizeres: "Aqui jaz Agenor. Esse era um grandessíssimo filho da puta e corno!" Claro que isso não iria sair nas matérias pagas antecipadamente para soltar uma homenagem anual para aquele grande homem. Naquele domingo a primeira menção do jornal cumpria sua promessa: 'Agenor Francisco de Melo Filho era, no mínimo,  um santo!' 




Comentários

  1. Kkkkkkkkk muito bom ,o texto!

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  2. me senti lendo Jorge Amado

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  3. Cloves Maia, que beleza seu texto acima. Parabéns! Com beleza literária, você desmascarou um "santo picareta". Abraço terno. Frei Gilvander

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