Os restos do Peru do Natal



Tem um texto do Mário de Andrade que eu simplesmente adoro chamado “O Peru de Natal”. Em um determinado trecho ele cita que “odiava a sua parentada” e eu ria. A crítica de um grande escritor a sua reunião nada formal de família em uma tradição que não me chegava. Não sei se eram as paisagens pintadas pelo Papa de nossa Literatura ou o fato de um ritual que eu não conhecia. Lá  em casa a gente não era acostumado a fazer ceias natalinas ou mesmo aniversários. O início dos anos noventa foram marcados por apagões,  políticos eleitos para fazerem estradas, desemprego, inflação e toda uma série de situações que caiam e marcavam nossas costas como aquela ferroada de abelha ou as chicotadas dos feitores.  Mas o Natal, especialmente o Natal, tinha um gosto diferente naqueles dias pra nós.  


Minha mãe era empregada doméstica em sua juventude.  Fazendo bicos nas casas das patroas,  passando roupa, faxinando, passeando com os cachorros na hora de voltar pra casa. Uma das coisas que eu mais fazia era massagear os pés inchados da coroa quando ela voltava pra casa. De tão cansada, ainda fazia a comida, levava os pratos, via um ou outros afazer da casa antes de se enterrar numa cadeira de frente da TV para assistir qualquer coisa na Rede Globo. Por vezes parecia um zumbi. Era uma oportunidade,  quase um dever de passar aquele gel massageador antes dela se retirar para uma noite sem sonho, um casamento sem amor e outro dia num martírio pra chegar ao trabalho,  engolir um arroz qualquer no almoço e poder voltar pra sua rotina matadora. Vinte reais numa faxina. O trabalho de um dia inteiro e que deveria ser dividido pra dois e ela lavava, passava, sobrava e guardava as roupas de pobres metidos a ricos, servidores públicos,  donos de lojas, pequenos burgueses que reclamavam de tudo, inclusive do serviço.  


Em dia de Natal a gente fazia aquela festa. Nossa mãe geralmente ganhava um troco a mais para ‘ajudar’ (dormir) na casa de alguma patroa sua e fazer uma verdadeira hora extra arrumando a casa inteira, dobrando papel de presente para lembrancinhas escrotas para adolescentes inúteis e sem conteúdo, subindo e descendo escada para montar árvore de Natal cheia de mofo, dar banho em cachorro,  ir na padaria buscar salgadinhos, fazer bolo,  carregar compra vendo as listas de desperdício do mês de algum casal qualquer com suas amantes prontas para a hora extra e ouvi-los falar mal de mais uma ceia inútil de Natal. 


Mãe ia de manhã cedinho pra casa da patroa, passava geralmente a noite acordada, limpava a casa todinha antes de voltar pra nós,  sempre com um presente que sobrava da lista dos convidados (três panos de prato, uma leiteira, um jogo de copos ou xícaras) um trocado passando para ajudar na feira de fim de ano e a coisa que mais nos parecia estar perto daqueles filmes da Sessão da Tarde nessa época do ano ou aquele texto do Mário de Andrade que eu sabia trechos de cor: os restos de Peru da ceia de Natal da família sei lá o nome. 


Era a única vez que nós comíamos Peru no ano, ou bacalhau,  a depender do patrão da vez. Depois que cresci aquela revolta sempre me invadia ao lembrar de minha mãe abrindo as vasilhas emprestadas da patroa com restos de comida, dividindo pra gente comer sempre numa manhã de muita expectativa.  Hoje eu entendo do motivo que a levava sempre a deixar pra gente comer os pedaços daquilo que iria pro lixo se certamente sua ‘amiga’ patroa não lhe permitisse, ‘com as bênçãos de Deus, claro’, levar pra sua casa três colheres de arroz com passas, meio panetone, uma caixa de chocolate e uma garrafa de dois litros de refrigerante, que tenho certeza que todas a vezes era ela que comprava. 


Mainha morta capotando na cama, muitas vezes sem nem conseguir trocar de roupa e ignorar quando a gente perguntava se ela não ia tomar banho, respondendo no automático que ‘já tinha feito isso no trabalho’. Uma vez ela acordou quase de seis horas da noite.  Em outra ela ficou possessa de raiva, a gente brigando por causa dos restos do peru.  Aquilo era lixo. Restos de uma alegria falsa dispensada como caridade, distante pra caralho do que um dia ensinou o menino Jesus. Hoje eu fico imaginando o nojo que minha mãe devia sentir naquelas casas fingindo serem ricas, penduradas nos cartões de crédito, devendo a Deus e ao mundo e reclamando como estava difícil encontrar vaga no estacionamento do Hiper Bom preço numa quarta de tarde.

 Eu hoje me odiando, especialmente depois de perder a inocência que aquele ritual de Natal narrado pelo Mário de Andrade era algo peculiar dele, algo inerente ao ciclo dele enquanto a maioria dos brasileiros padeciam de fome a cada fim de ano, enquanto toneladas de alimentos eram incinerados pelo dono do supermercado para não colocar no lixo de trás da loja evitando assim as filas de pedintes, desempregados e moradores de rua catando entre seus tambores de lixo, quase tão nojentos, quase tão mentirosos, quase tão falsos e hipócritas quanto seus comerciais do bom velhinho,  aquelas músicas abjetas nas campanhas de fim de ano, aqueles abraços falsos e aqueles pedaços de coro de peru pendurados nos ossos dados com mau gosto, divididos forçadamente pelo patrão (talvez) entre a empregada e o cachorro. 


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