Solidariedade


Chris Brunskill/Getty Images


    Dia de jogo da Seleção e o dia começa levando a filha pequena para uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) perto de casa. Dia anterior, agonia. Agora era encarar a fila pro atendimento em plena segunda feira de manhã em plena Copa do Mundo do segundo jogo da Seleção, em um dia onde o jogo se inicia logo de 13 horas. Ou seja, quase um feriado nacional. Seguindo o protocolo, apenas uma pessoa pode acompanhar o 'adoentado'. A mãe entra e eu fico do lado de fora, esperando um resultado positivo para o futuro atendimento. De repente, uma agitação. Familiares chegam para socorrer uma senhora que acaba de receber dos médicos a notícia que seu esposo falecera. 

    Comoção. É a terceira vez seguida que eu presencio uma morte na mesma UPA. Como de costume eu levo comigo um livro para leitura. Não importa a ocasião; sempre carrego comigo um livro pra ler, já que nunca sabemos quando iremos ter que encarar uma espera, uma filaou algum ônibus que quebra no meio da rua. Quando a família chega não há mais condições de fazer leitura alguma. Jacó, aparentemente um simpático senhor, morria ao dar entrada na UPA depois de um ataque fulminante no coração. Impossível não se emocionar com aquele cena: a esposa sai da UPA e se encontra com uma parente aos prantos, tentando explicar em meio as lágrimas o inexplicável ciclo do adeus a um ente querido. Seu Jacó foi pra praia, recebeu os amigos, comemorou o final de semana, pescou e, num cotidiano final de domingo passou mal e foi socorrido. 

    A Seleção jogaria horas depois. Imagina como a Copa do Mundo vai marcar essa família daqui pra frente. Entre os filhos e amigos, que agora ocupam a entrada daquela unidade de saúde, alguns vestem a camisa do Brasil. As muitas faces de um único evento se desdobrando ali. Vários olhares. Um pai com um livro na mão esperando a filha, uma enfermeira chegando para cumprir seu plantão, um PM esperando largar, talvez. O senhor vendendo café, um jovem com torcicolo. Mais tarde cada um ali, paciente ou não, vai olhar de forma diferente aquela passagem. Ser ou estar paciente. Tudo jogado por terra diante daquela situação. A esposa derrama-se em lágrimas. Não há consolo. Nada que possa ser dito ali. Os filhos ao lado são envolvidos por aquele manto da tristeza. Uma menina sentada ao meu lado olha pra mãe e recebe (tão jovem) sua primeira lição sobre vida e morte. Sem dúvida o jogo daquela tarde não vai ser assistida por aquela família. O verde e amarelo daquelas camisas representavam o luto. Pouco importaria o resultado da partida mais tarde. 

    A família teria que esperar chegar algum parente de primeiro grau para liberar o corpo, alguém deveria entrar em contato com a funerária, os parentes mais distantes deveriam ser informados, os amigos mais próximos, os vizinhos. O corpo seria levado para outra cidade, carros para o deslocamento deveriam ser disponibilizados, deveriam serem compradas flores, arrumar a papelada para a despedida final, o recurso precisaria ser levantado e a dor, em meio a tudo isso, marcava mais uma família com sua assinatura. A gente nasce morrendo e vai se entregando a ela vagarosamente, quando ela não decide nos buscar, assim sem marcar hora. "É melhor ir na casa onde mora o luto" diz o livro de Eclesiastes. "Alí se vê o fim de todos nós". Salomão deve ter dito isto sem estar olhando para os olhos de adeus: suspeição, agonia, dúvida. Luto em pleno dia de comemoração. Não deu mais pra ler meu livro. 

    Na volta pra casa o alívio de poder voltar com a minha pequena paciente com tudo para se recuperar. Foi só um susto. Soro. Remédio. Monitorar a febre. Nenhum direito de reclamar de nada, nem da demora, numa terceira vez em que vejo se repetir cenas como aquela.  Solidariedade. Talvez tenha sido isso que faltou ao país com o Neymar. Talvez tenha faltado isso nele quando foi apoiar o bolsonaro durante a eleição. Milhares de hospitais lotados, famílias em luto naqueles dias. Essas visitas forçadas na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) me fazendo recordar que a capacidade de se colocar no lugar do outro (empatia) e essa qualidade de se identificar com o sofrimento alheio ajudando a refletir como cada coisa possui várias faces, e como cada momento vivido pode trazer sentimentos distintos e outras emoções, mesmo que vestidas com as mesmas cores. Uma mãe aos prantos, tentando se segurar como podia, para consolar a mãe, inconsolavelmente com razão. Ambas com a camisa da seleção canarinha, emulando forçadamente um luto, sentimento esse que insiste em perseguir a todos nós. 


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