Meios Contos Tortos: Dia dos Mortos

 



 

Tinha acordado umas 16hrs. Dia 2 de novembro era dia de encontrar Aníbal, seu vizinho. José Aníbal tinha ajudado sua mãe, dona Idalina, a praticamente criá-lo junto com seus irmãos Amancio, Freire e Dominguinhos. Dos quatro filhos apenas ele, Frederico, havia sobrado. Aníbal era tipo aqueles solteiros convictos, beato consagrado, rato de igreja, assíduo frequentador dos cultos de domingo a domingo. Dona Idalina tinha sido sua babá, não podia ter feito outra coisa, seguido outro caminho a não ser o de ajudá-la com os filhos pequenos, sobretudo após a viuvez da ex-babá, agora vizinha, amiga e confidente. José Aníbal morrera aos exatos 85 anos, de pancreatite aguda, doença alimentada por um antigo vício de beber escondido cavalares doses de cachaça. Era um home de Deus, era um homem de fé, era um devotado filho do divino, mas a carne era fraca. Coube a Fred o honroso dever de visitá-lo anualmente, mesmo depois de casado, com filhos, mesmo com a mãe também tendo partido pra junto do antigo vizinho e amigo.

Frederico agora tinha 66 anos, 8 filhos, duas cirurgias no currículo e 13 netos, mas não deixara nunca a tradição de, religiosamente, com chuva ou com sol, visitar o amigo no Dia dos Mortos. Acordava cedo, passava na padaria, comprava 12 pães francês, um frasco de margarina, um pote de doce de goiaba e ia até o cemitério de Grande Villa. Por volta da meia noite e trinta a tradição se cumpria: a pouca grama do chão estremecia, o vento fazia questão de não passar naquele terreno, um pássaro, ao longe, soltava uns palavrões sobre aquele absurdo e seu Aníbal dava o ar de sua graça, saindo com cada vez mais dificuldades do buraco onde outrora havia algo que a caridade chamou um dia de caixão.

Como é que vão as coisas sei Aníbal? Muito quente lá em baixo ainda? Li outro dia, recente, não faz nem dez dias, que na verdade o inferno é frio. Isso procede?

Apesar do esforço que o cadáver fazia pouca coisa parecida com palavras poderiam sair daquele aparelho fonador decrépito. Alguns anos atrás eles até ensaiavam um logo debate filosófico sobre o 'estar no mundo', agora apenas ficavam frente a frente, encarando-se como se aquela agenda apocalíptica fosse a coisa mais normal do mundo.

Aníbal não tinha mais língua, olhos, dentes ou se quer  dedos para interagir, gesticular. Os vermes da terra não tinham deixado nada para honrar aquela ocasião, mais de duas décadas passadas. Com o resto de mão que sobrara daquele pedaço de corpo apodrecido Aníbal apontou para o céu fazendo um sinal que pareceu um sonoro &não!&.

O céu é que não é? Como assim? Eu sempre achei que no inferno as coisas seriam um pouco mais agitadas, menos organizadonhas, bagunça, sexo, orgias. . . Não que teria trabalho suficiente pra deixar a pessoa assim desse jeito.

O cadáver olhava para o visitante, deixando cair um resto de couro da barriga, numa tentativa inútil de fazer vibrar as cordas vocais que ele não mais tinha. Sentou-se no chão. Quase duas da manhã agora. O barulho que fez ao sentar foi de um monte de ossos revirados dentro de uma sacola de lixo depois de dias fechada sem ser jogada devidamente. Aquilo era de embrulhar o estômago, mas já fazia parte da tradição anual de Fred, coisa que ele não podia de forma alguma negar.

A situação era uma só: um dia Dona Idalina, cansada de pedir a Deus que lhe concedesse um filho, resolveu apelar para o outro time. Foi até a encruzilhada, acendeu uma vela preta, despejou sangue seu e de animais em um pires branco cheio de algodão e conjurou um inimigo dos Santos. Baalzebu veio em seu socorro. Depois de três dias e três noites de sexo intenso, de todo tipo de blasfêmia contra os ensinos do Jardim, Dona Idalina estava inequívocamente grávida. Seus filhos seriam saudáveis, inteligentes e bonitos. Todos ficariam miseravelmente ricos e depois de todos se tornarem pais de família ele, Baalzebu viria pessoalmente lhes arrancar suas almas, todas de forma dolorosamente. Valia a pena a pexinxa? Valia. Pelo menos era isso que o capitão do inferno lhe assegurava. A beata duvidou. Mesmo assim fez o pacto e derramou umas três lágrimas, certa de que deveria honrar sua palavra e cumprir com o trato feito com o capiroto.

Três meses de gravidez, nova vela acesa na encruzilhada. Estava com tesão. Queria sexo e seu marido, apesar de todo esforço, não conseguia dar a sua digníssima esposa uma boa gozada. Dessa vez foram cinco dias de orgia com o demônio dos pés de cabra, cabelos longos e lisos e uma tatuagem no ombro esquerdo escrito 'amor só de mãe'. Perto de completar oito meses suspeitou que estava grávidas de gêmeos. E foi. Amancio e Freire nasceram bonitos e saudáveis. Depois dos dois meninos o capeta passou a visitá-la. Não queria saber de mais nenhuma outra mulher que não fosse ela, mas ela enjoou do amante. Queria sossegar. Trabalhando, cuidados de seus filhos e dos filhos dos outros, não via mais graça no sexo, nem do amante sempre barulhento em dias de chuva.

Indignado com a recusa da amada o capeta resolveu encurtar o combinado. Aníbal resolveu barganhar com o inferno, trocando sua alma pela dívida da antiga babá. Tocado pelas chamas frias da casa do capeta, o velho não veria a morte nunca mais lhe tocar. Ficaria no mundo, apodrecendo, definhando, sentindo os vermes lhe corroerem suas carnes e órgãos, sentindo dor e agonia eternamente. Seu vizinho, sabendo de sua generosidade, resolveu fazer aquele ritual, pelo menos uma vez ao ano, pra honrar a memória da mãe e também a dele.

Como o diabo nunca promete aquilo que diz, voltou e levou seus irmãos da maneira mais dolorosa possível, retaliação por ser chamado de brocha pela Grande Villa. Em cada igreja, denominação ou religião local ele perdera fiéis amantes.  A Fred só restava visitar ao amigo. No Dia dos Mortos era bom encontrar com alguém que pelo menos tinha alguma história pra contar. 

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