Dizem que andar de
bicicleta é uma das melhores coisas do mundo. Disso eu não sei. mas é bem
verdade que, ao pedalar leve, sentindo a brisa e o mundo passando bem de frente
aos nossos olhos meio que mistura nosso espírito com o mundo, com as folhas
caindo, o vento cantando em nosso ouvido e o mundo ao redor meio que submisso
ao nosso desejo de seguir livres. Se não tiver um poste isso talvez seja o mais
perto de Deus ou dos pássaros que a gente consiga ir sem precisar recorrer aos
escravizantes apelos da tecnologia. Quando eu era pequeno aprendi a dor e
responsabilidade desse poder da pior maneira possível: saí andando na bicicleta
logo na primeira vez que subi. Meu pai me deu sua bike nova de presente, eu
depenei ela em menos de uma semana e tenho marcas de arranhões espalhadas pelo
corpo até hoje porque só aprendi que não se precisa apertar os dois freios ao
mesmo tempo, especialmente quando se acha uma cédula de dez contos no chão.
E eu me lembro da
bicicleta: uma Golden Lion amarela, toda cheinha de listrinhas pretas. Seu
nome: não lembro. Só sei que tinha um Pikachu colado no pisca pisca da frente,
mesmo eu não suportando (nem assistido um episódio se quer) Pokemon. Mas eu me
lembro de Cláudia. Irmã mais velha de Maria, que estudava comigo. Eu conheci Cláudia
nas aulas de Teatro e, do nada, passamos a nos ver freqüentemente. Isso era no quê? Primeiro ano, eu acho. Maria,
a mais nova, era implicância pura comigo. Outro dia desses, se encontrando sem
querer, como dessas voltas que a vida dá e nos faz voltar aos lugares e
pessoas, me confessou que era puro ciúme adolescente. Não romântico. Ela só não
queria ver a irmã mais velha invadir sua área, tomar seus amigos, mesmo os mais
distantes. Hoje eu entendi. Na época só achava ela pedante, daquelas meninas que
sentam na frente da sala e são as primeiras com a mão levantada quando um
professor faz alguma perguntar qualquer bem no meio de uma aula de sexta feira
depois das cinco horas, e a gente não vendo a hora de tocar o sino, pegar a
bike e sair voando pelo mundo.
Era assim. Na minha
bicicleta eu não precisava de nada. Ia pra tudo que era mundo e era na
velocidade da luz que queria sempre permanecer. Isso até conhecer Cláudia, que
me fez ver o mundo com mais calma e me fazer descer da bike, passar vez em
quando perto de sua casa, oferecer carona pra ela pra ela chegar mais rápido em
casa, mesmo sabendo que ela ia demorar um pouco, naquela doce ilusão
adolescente de trocar meia hora de conversa, uns dois ou três beijos se tivesse
sorte e voltar pra casa com o coração mais leve, como se toda a leveza do mundo
não fosse justamente aquilo que nos movia, combustível da vida de nós
‘tudinho’, mas que depois vai esmorecendo, ficando devagar feito um motor velho
ou uma bicicleta que vai ficando gasta com o tempo.
Cláudia estava ali,
ocupando quase todos os meus pensamentos enquanto sua irmã mais nova nos
perseguia, parava nosso clima como aquele poste que falei ou mesmo a freada com
os dois freios ao mesmo tempo naquele tempo de inocentes. Sim. Não sei se era o
tempo, se era eu mesmo, o ensinamento de vida que eu tive ou um falso sentido
de nostalgia que pega a gente quando a gente vai ficando mais velho, mas não
tinha mesmo nenhuma malícia. Sabe “A Raposa e as Uvas” do Reginaldo Rossi? Era
bem aquilo ali só que nada motorizado. Entendam: uma bicicleta era quase uma
ascensão social no início dos anos 2000. Eu era feliz e não sabia, até destruir
a bike que meu pai havia me dado, fruto de seu orgulho pelo esforço do filho,
fruto do esforço do pai que queria se aproximar do filho mais rebelde, fruto do
trabalho suado e do grande esforço do pai que o filho, idiota desnaturado, não
tinha a capacidade de notar naqueles tempos brisa, beijo inocente de língua e
maratonas de clips nas madrugadas da MTV.
Mas eu encontrei
Cláudia, sem querer, voltando pra casa num fim de sábado, cheia de sacolas de
compras, ajudada pela irmã mais nova também cheia de compras e eu não poderia
deixar de ajudar. E eu desci da bicicleta, eu me ofereci pra ir com elas, eu
pus pra jogo meu melhor sorriso, coloquei umas sacolas no guidão (a gente chama
‘guidom’), fui andando com elas depois de uma tarde inteira de praia e corrida
maluca sem ponto de chegada nem muito bom senso (aquele desejo de sentir a
viciante brisa tirando da cabeça as notas e as aulas de matemática, química e
física do semestre inteiro. Mas eu não tava cansado. Não ao lado de Cláudia.
Parece que o alívio do peso ajudou a irmã mais nova a me tolerar pelos próximos
exatos dez minutos, trajeto da rua asfaltada até a sua casa. Tá bom que ela ficou
entre nós dois, com o pretexto de não deixar cair nenhuma compra, mas deu pra
aliviar tudo à medida que os sorrisos trocados entre Cláudia e eu venciam a
barreira invisível da ‘quase cunhada’.
Eu fui até a frente da
casa, levei todas as compras penduradas toscamente na bicicleta e devo ter
levado uma ou duas topadas no trajeto, haja sacola pra equilibrar na minha Golden
Lion Shimano. E chegando perto quase das mil palavras, na dúvida se encontrarão
guarita ou serão levadas pelo vento, eu me lembro de chegar na frente da casa
de Cláudia e Maria. A irmã mais nova entrando, aquele beijo discreto no rosto,
algum comentário em código do tipo “tá pesado aí?” significando alguma coisa
indecifrável como um “eu gosto de gostar de você” ou qualquer idioma que só um
coração livre, um coração adolescente pode entender, e a mãe das meninas
chegando, perguntando se eu era quem ela imaginava que eu seria e me oferecendo
um bolo com uma xícara de café e me dizendo depois, de uma forma bem fria,
depois de largar um enorme sorriso naqueles lábios de um batom bem vermelho
parecido com os da filha, e me dizer que não queria mais me ver naquela casa,
nem “na sua rua”, pois não queria sua filha se envolvendo com um rapaz negro, e
que não era nada comigo, só não queria criar a filha “pra isso”, e eu voltando
pra casa com uma trava bem no meio da garganta, sabe? Não consegui nem montar
na bicicleta pra voltar mais rápido. Eu lembro que cheguei em casa de cabeça
baixa, procurando uma forma de apagar aquela culpa e de ficar sentando na
frente de casa, alguns minutos. Depois entrei. Depois segui. Aquela culpa
voltaria e me persegue ainda hoje. Culpa por nascido preto, uma marca na pele.
Umas marcas tão mais profundas e difíceis de sair do que a dos baques com a
minha Pikachu.
Perdi a graça. Dias
depois meu pai vendeu a bicicleta. Eu tinha uns 15 anos e demorei isso tudo
para saber que meu mundo não era tão simples quanto andar de bicicleta. Naquele
dia eu conheci o racismo. E o amargo na boca, o travo na garganta volta e meia
volta e me faz lembrar daquele menino.
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