Era perto do Dia dos
Pais. E essa era pra ser uma memória doce, alegre e até engraçada. Mas hoje,
olhando ‘de longe’, das distâncias que a idade ou os cabelos brancos nos
delegam (não que meus trinta e poucos anos me deem um certificado de velhice, é
claro. Cabelo branco não significa experiência nem como idade significa
garantia de não sermos um poço de teimosia, no meu caso, ou ignorância). Mas
essa é a memória que eu tenho agora para -em tempos de internet- compartilhar.
Era perto do Dia dos
Pais e Camila caiu doente. Tive de levar Alaninha na casa da bisavó, em Vitória
de Santo Antão. 59,1 km de distância. Um ônibus para o metrô no Recife. Um
metrô para o TIP, R$6,00 e pouco de passagem e 40 minutos, mais ou menos, até a
chegada. O primeiro detalhe é que eu não sabia chegar bem na casa de Dona
Linda, vó de Camila. Detalhe. Alaninha, no alto de seus quase quatro anos
tirava de letra o caminho. Achei. Sabia nada. Agora seria a hora de lembrar que
nunca me senti muito à vontade em certos ambientes familiares e que não lembrava
mesmo o caminho, seja pelas poucas visitas (na época), seja pelo habito de
fazer sempre o mesmo trajeto ou então pela minha inteligência espacial ser algo
que talvez nem exista. Eu nunca vou aprender a dirigir. Já andei de carrinho de
bate-bate. Sei bem do que estou falando.
Era perto do Dia dos
Pais e eu me perdi. E eu lá sabia o caminho? Dobro uma esquina, acho que estou
no caminho certo e, de repente, dou de cara no cemitério da cidade. Coloco
Alana na ‘cacunda’, dou meia volta em direção a igreja (meu único ponto de
referência naquelas alturas) e vou parar na BR. Alana ri. Penso em ligar pra
Camila umas duas vezes, mas meu orgulho não deixa. Vacilar numa besteira daquela? Peraí, né? Eu já havia assistido à
Sociedade do Anel algumas vezes. Aquilo era balela. Paro um pouco. As costas já
estão meio doidas. Osso pesa. O orgulho parece também ter cansado um pouco.
Ligo. Primeiro a enrolada: “tá tudo bem?
Tais melhor?” Mas, Alana não se contém. Conta pra mãe que estamos perdidos,
enquanto ri. “essa menina precisa sair
mais de casa”. Tento explicar a proeza que fiz pra chegar ao cemitério. E
foi grande o esforço, já que tomei uma distância considerável na direção
errada. Parece que a igreja não tinha me ajudado a chegar a lugar nenhum mesmo.
Mais uma vez. Explicação dada, mapa feito na memória, volto ao percurso
destemidamente. Eu não disse que o espírito de Frodo estava comigo? Pra
completar, a cereja do bolo: um senhor, amigo da bisavó de Alana reconhece a
pequena, para o carro e nos oferece uma
carona. Cheguei, almocei, comentei o quanto o trânsito estava difícil naqueles
dias e voltei pra casa. Final de semana fui motivo da graça. A criança não se
conteve em contar que estávamos terrivelmente perdidos. Sem graça, entrei na onda. Até hoje uma tia,
a cunhada, o sogro, a avó lembra o acontecido. Eu não. Joguei no mar do
esquecimento.
Era perto do Dia dos
Pais e alguns detalhes vieram à tona. Em minha defesa posso assegurar que
fiquei tranqüilo, apesar de perdido. Sério. E talvez tu até ache graça na
história, e tem mesmo. Aquilo não estava na minha programação. Iria com Camila
e tudo daria certo. Iria até ligar a TV na sala das coroas e assistir ao Globo
Esporte enquanto estivesse no piloto automático daquela visita social. Iria
mesmo. Você já fez isso também que eu sei. Depois da ‘onda’ a gente vê que a
graça da história só chega depois. Na hora, várias coisas passam batidas, como
detalhes de um cenário que o maratonar da série nem permite que a gente tome
nota.
Era perto do Dia dos
Pais e eu nem reparei no olhar da cobradora do ônibus pra mim. Nem me toquei na
desconfiança dentro do vagão do metrô, a demora da passagem no guichê da
rodoviária (como se eu não passasse por ali quase toda semana), o motivo do
senhor dar carona pra mim naquele fim de manhã, quase começo de tarde. Acontece
que Alana estava vestida com aquele vestidinho azul, presente de sua avó
(acho), parecendo uma bonequinha de porcelana. Alana de franjinha, cabelo todo
arrumadinho e. . . branca. Dessas coisas que não passam pela nossa cabeça na
hora. Meses depois e uma das tias me
segreda que o senhor, amigo da família e frequentador da mesma igreja, teria
ficado preocupado. Alguns sequestros de crianças estariam acontecendo na cidade
e ele teria me ‘estranhado’. Claro. Se você um negro vestido de preto, com um
Black Power, uma bolsa nas costas e andando na rua com uma criança branca você
logo desconfia, não é?
Era perto do Dia dos
Pais e eu estava com Dandara no meu condomínio. Mais de seis anos depois.
Dandara tem um ano e três meses e está começando a dominar o mundo com seus
próprios pés. Braço nunca mais! Estava lançando o seu próprio manifesto do tire a mão de mim, mamãe, agora. Na
calçada observo o quanto essa menina cresceu em tão pouco tempo e alguns
cabelos brancos dizendo que não era só sinal de velhice. Não agora. No alto de
meus trinta e poucos anos (não que os trinta e poucos anos nos deem um
certificado de velhice. Repito) me parece que o racismo nos persegue mesmo,
como nossa sombra em dias de sol. Era perto do Dia dos Pais, eu sentado na
calçada do meu condomínio, e aqueles olhares passando por mim como uma
inquisição. Perto do Dia dos Pais. E eu tendo que responder que sim. aquela era mesmo minha filha também.
Muito bom
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