O homem escreve
solenemente. Em sua frente, linhas brancas virgens e aconchegantes de uma folha
em branco qualquer. Debaixo da mesa, um pequeno rato o observa atentamente.
Aquilo chama a atenção do homem. Talvez
aquele insignificante roedor estivesse o testando, ponderando, analisando sua
capacidade intelectual, sua capacidade de observador, sua inteligência
emocional. Talvez também sua burrice. A folha de papel não responde ao
homem. Fica em silencio. Não devolve a expectativa de quem achou que escreveria
hoje talvez a história do fim do mundo antes dele chegar.
O rato é tímido. Uma
criatura por demais reservada, coberta por um doce manto de maldição,
perseguição e ódio. Alegria das crianças, diversão dos gatinhos, susto e ódio
das mulheres. Um rato pode frustrar uma noite de um escritor medíocre. Naquela
noite ele só queria (talvez) dá uma volta, esticar as pernas, sair um pouco de
casa e andar na casa, mesmo que o homem se incomode e trave frente uma folha em
branco. Nesse momento, desafiado, o
homem se sente ferido. Intimidado até. Convocado a deter o bicho, aniquilá-lo,
mostrar ao roedor seu local de origem, seu lugar numa certa e determinada
hierarquia biológica, seja lá que isso exista ou não. Mas, naquela noite, o
homem não conseguiu escrever nada. Nenhuma linha se quer. A culpa agora tinha
achado um dono.
Homem,
criatura cega e infeliz. Crítico e transformador do mundo ao seu redor quer ser
dono do lugar e jogar aos quatro cantos suas menores frustrações e erros de
cálculo. Homem, cérebro de tudo. Detentor das chaves que abrem os portões, as
despensas e as grades. Homem, cérebro de tudo. Mas não é sempre assim. Homem,
mamífero imundo. Quer matar um minúsculo rato para descontar suas limitações,
aquela ligação que não veio (em seu lugar, uma conta. Mais uma) e a dúvida
sobre as palavras que, essa noite, assim como em outras, simplesmente não nasceu.
Homem, descontrolado. Quer descontar no rato toda a sua insensatez e parece que
vai conseguir.
O
homem, chamar-lhe mito, não passa de um absurdo. Para
a sua leitura quer o total silêncio. O rato se camufla na paisagem. Debaixo da
mesa, observa o escritor fadado, cansado, silente. Daqui a pouco ele vai se
sentir estúpido e inútil. Vai conseguir escrever algo. Depois. O relógio já
passa da meia noite. Seria melhor o ratinho se debandar, sair dali. Não o faz.
O homem joga de lado um livro, larga a caneta, o papel e a temperança, olha
fixamente para (agora) seu alvo, sua vítima, pega sua sandália, mira. Por uns instantes para. Pensa. Algo banal lhe
vem à tona, mas é passageiro. Alguém de sua casa passa em sua frente. Não fica.
A culpa é dos pensamentos, do livro, da sua vista ruim, das palavras que não
saem, da ligação que não vem, de quem passou em sua frente?
O rato vai embora. Vai
viver por mais um dia. Pelo menos por hoje, talvez. Mas não é dele a culpa.
Definitivamente.
(2004)
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