Acho que foi a primeira
vez que me dei conta que existia o racismo. Como quase um tipi de cerimônia de
conhecimento, coisa do tipo. A gente fica de frente, se olha nos olhos, aperta
as mãos e parte. Formalidades. Mas aquela foi a primeira vez e, como tal, passa
despercebida, discretamente, quase invisível. O ano foi 1998. Eu devia ter uns
10 anos e foi justamente uma menina, uma amiga por assim dizer, que me abriu as
portas para esse outro mundo, um mundo bem diferente e mais perigoso. Algo que
vai além de nossa casa, nosso quintal de folhas simples e um cachorro. A realidade
é um pouco mais larga.
Em 1998 eu e meu irmão,
dois anos mais novo que eu, fomos meio que convidados pela patroa de nossa mãe
para conhecer sua filha, Raphaela. A patroa era dermatologista, casada com um
engenheiro depois de um caso rápido entre os dois. O marido não parava em casa.
Ela administrava a casa, a filha, sua vida e uma clínica estética em um desses
bairros nobres do Recife. A casa era do tamanho de um mundo. Raphaela tinha um
quarto só pra ela e um pastor alemão todo preto chamado Nick. O cachorro era
enorme e eu pequeno. A patroa morava no Bongi. Ainda hoje não sei como chegar
por lá de ônibus, mas gostava de ficar ao lado do motorista, vendo a pista, um
pouco antes de passar por baixo da ‘borboleta’.
A casa era grande, tinha uma garagem que só
vivia vazia, uns quartos que eram o dobro do tamanho da nossa casa, uma
geladeira de dois andares e, lá atrás, no final de um corredor onde Nick
costumava deixar sujeira pra minha mãe limpar, ficava um quartinho, um
verdadeiro cubículo, onde minha mãe por vezes ficava em tempo de Natal ou Ano
Novo. Naqueles tempos ela sempre trazia uns restos de peru, farofa com ameixas
dentro, castanhas e Panetone. Por vezes ficávamos esperando por ela chegar a
casa. Sempre trazia alguma novidade. Mas naquele dia eu e meu irmão tínhamos
ido à casa da patroa para conhecer Raphaela. Não fazia nem idéia pra quê.
Raphaela tinha um
quarto maior do que a minha casa. Do lado da cama uma caixa de Big Big só pra
ela e um num sei quanto de todo tipo de coisa que eu e meu mano nem fazia idéia
que existiam. Na sala ao lado do quarto, uma TV de umas mil polegadas
centralizada. Ao lado, um aparelho de VHS daqueles importados e desconhecidos.
Naquele dia conhecemos pessoalmente a menina Raphaela. Fomos até ali, pois era
isso que as domésticas faziam e ainda hoje fazem. A queda do menino Miguel não
é uma exceção. Fomos até ali, pois éramos os mais novos. Eu o mais sapeca.
Estávamos de férias. E Raphaela não tinha com quem brincar. Não tinha irmãos.
Mal podia sair pra ir à padaria no final da rua.
Raphaela, assim como
eu, não entendia nada sobre a vida. Raphaela era sozinha. Ela e sua caixa de
chicletes que ela não fazia questão de dividir conosco. Assistimos o Titanic.
Era algo novo. Inédito em sua plenitude. A TV era tão grande que parecia que a
gente ia cair dentro dela. Raphaela rindo da nossa cara de besta. Já tinha
visto aquele filme bem umas mil vezes. Sabia todas as falas. Repetia e dizia coisas que a gente, crente,
não podia dizer. A gente comeu pizza no fim da tarde. O Nick não parecia mais
tão grande assim. Voltei naquela casa umas três vezes. Na segunda vez foi para
o aniversário de Raphaela. Eu e meu irmão. Não queria ir. Mas a promessa e o
convite eram para irmos, eu e meu irmão mais novo (sempre ele) passarmos o
aniversário de ‘Rafa’ no Playcenter. Raphaela não tinha amigos. Não de verdade.
Foi um dos dias mais divertidos que talvez eu tivesse na minha infância. Sério.
No meio da tarde, pizza novamente. Raphaela passou o dia brincando com meu e
irmão e eu. ‘pega aquele refrigerante pra mim’. ‘joga esse papel no lixo’. ‘por
que que tu rir assim, menino?’
No fim do dia a coisa
não tinha mais graça alguma. No outro dia mãe ia sair de casa antes das seis da
matina, chegar depois das cinco, pedir uma massagem nas pernas como se fossem
duas colunas de concreto depois de um dia em pé passando roupa. Dia de faxina
ela chegava morta. Ficava tão exausta que mal conseguia reclamar da gente
brigando, do barulho da rua, da TV ligada até tarde. Era quase um zumbi.
Raphaela depois foi embora. Não sei que fim levou. A menina que precisava dos
filhos da empregada para não se sentir sozinha. A menina e seu cofre lotado,
seu quarto cheio de brinquedos caros, roupas de todos os tipos, mas um sorriso
triste. Uma casa tão grande e tão cheia de silêncio. Uma rua tão rica que
parecia mais um cemitério. Aquele dia inesquecível no parque de diversões
comemorei foi meu aniversário. O meu, o do meu irmão e o de muitos anos. Nunca
mais voltei ali. Hoje eu penso que não fiquei com raiva de Raphaela naquela
tarde. Eu fiquei mesmo foi com pena.
(2001)
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