Ali ele sai, corre
apressado, deseja chegar o mais rápido possível em casa. É um dia especial, a
despeito de ontem, que foi apenas um domingo, dia para chorar as mágoas mais
frias, véspera de feriado, o dia que seria o dia mais feliz de sua vida, nova
vida, quase paraíso em dia de sol. Ele parece mais uma canção do Tim Maia,
assobia tranqüilo enquanto vê seus sonhos voltando, tudo passando
milimetricamente em sua frente. Lembra da juventude, dos feriados perdidos
trabalhando, das muitas e muitas batalhas nos chamados ‘dia de branco’,
daquelas muitas noites em claro (doença em casa, velório, enterro, assalto),
mira pela janela procurando estrelas e quase pode desenhar os olhos da amada,
amiga de todas as horas, espera e esperança de um futuro, quase ouve seu sorriso,
sente o cheiro de seu perfume, xampu de criança sem seus cabelos lisos. . .
Foi numa bendita festa.
Ele costuma lembrar sempre de como tudo começou. Sem nexo. Sem sorte e sem
jeito. Quem diria que ele teria tanta sorte assim? Lembra daquele sorriso. Era
uma festa qualquer de noivado, ele trabalhando honestamente como garçom, e
pedindo desculpa nervosamente por ter esbarrado na irmã da noite como presente.
“doeu alguma coisa?” “se machucou?” “desculpa
o sem jeito; não é todo dia que se vê casamento tão perfeito!”. Era tudo
mentira. Se quer sabia o nome dos noivos nem mais aquilo que estava fazendo
ali. Só lembra daquele sorriso. Naquele dia, depois de organizar todo o salão
de festas, um convite pra uma carona até o centro da cidade que terminou numa
pizza, que exigiu depois um sorvete, depois uma cerveja ali naquele bar da
esquina (não custa nadinha, um calor
desse...), uma troca de telefonema inocente, a espera sem esperança por
umas férias na Irlanda de três meses (quase que ela não voltava, não fosse ter
ido já decidida romper o noivado de sete anos, com um oportunista que só queria
lhe usar para chegar mais longe e um desajeitado garçom numa festa que ela se
quer iria) tinha valido a pena e estava em plena vigência de garantia. Aí ele
para, olha pelo jardim, avista uma rosa (que
pétala linda!), recorda outra canção, agora do Djavan, se abaixa
inocentemente para pegar aquela linda rosa.
De repente, não menos
do que de repente, seus cinco sentidos enlouquecem, apuram algum estranho fato,
fazem barulho denunciando algo errado dentro de si naquele inocente aparente
idílio poema árcade. Algo dentro de si diverge. Sim! Não! Talvez! Não é nada
demais. Sem motivo algum para pânico. Não há nenhuma pauta mental para se
observar; nenhuma reflexão pra fazer. Ele está consciente. O problema é que
todo aquele sol, aquelas nuvens faceiras passando no céu como que dançando,
decretou seu sofrimento ao fazer-lhe perder-se em tanta luz, tanto algodão doce
na praça, tanto beijo e abraço de namorado, tanta promessa feita sobre as
arvores e formigas como testemunhas...
Acontece que as
alianças, duas para ser mais exato, de ouro branco, com o nome dele e da amada
escritos ambos em letras similares, simplesmente haviam caído de seu bolso. Em
fração de segundos perdera seu futuro na grama, num sempre inexplorado mundo
verde de uma praça de um parque que lhe agora lhe tomava também a alma e a cor,
levara também de quebra o humor e lhe fazia sentir agora o suor daquele quase
comercial de margarina. Como era quente no mundo real. Aí ele se desespera.
Chora. Mesmo. Lembra mais uma vez o passo a passo decorado: era o dia de pedir
a sua amada em casamento. “o dia do dia
mais feliz de suas vidas”. Era um feriado, era um calor infernal naquela
praça, era tanta gente passeando de bicicleta, tanto picolé nas calçadas, tanto
cachorro ‘cagando’, tanto lixo na lixeira, tanto guarda, tanto apito, tanta
pipa no céu, tanto menino. Agora era feriado. Era tarde. Eram quatro horas
nessa galáxia perdida. Eram quase três anos juntando força e coragem para pedir
Maria Estela em casamento e oito
meses e meio juntando as economias, fazendo hora extra, lendo menos jornais,
saindo menos com os amigos, malhando e emagrecendo para caber esbelto num traje
finíssimo e elegantérrimo de casamento. Tudo isso agora pra nada. Em vão
procurar. Procura. Tortura procurar. Procura. Tanto meio de mato. Tanto adubo
natural entranhado nas belas tulipas, begônias, papoulas, girassóis, mimosas,
copos de leite. . .
Ele senta num banco,
desliga o sorriso da cara e o telefone. Faz o passo a passo outra vez. Ali ele
ficará por mais uma vida, uma eternidade ou mais cinco minutos. Era mais uma
história para se contar, daquelas que não se começa obrigatoriamente com um era uma vez. . . Passa um moço com um
carrinho de raspa-raspa. Groselha, coco,
abacaxi e menta. Tais muito apressado? O movimento tá ruim é? Na verdade
ele não queria mesmo era casar. Me dê aí
um de cada!
(2001)
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