Quatro
e meia da manhã. A mão levanta levemente procurando evitar
um despertador de despertar. Na ponta dos pés, massageia o chão até a porta,
toma um banho silencioso, bota a água no fogo, assa o pão dormido, passa um
café. Cinco e meia e já tá na rua. Medo
na parada de ônibus. Demora. Ônibus lotado até a integração. Em pé a paisagem,
a passagem e o tédio se misturam com a música triste no fone de ouvido. A rádio
não diz nada. O radialista lê o horóscopo do dia, mas o corpo não dá resposta. Dorme
a alma enquanto a integração não chega. Seis
e meia e metrô lotado. Medo do COVID. Num esforço para se evitar o contágio
não se encosta. O corpo dói e dorme num vagão lotado, velho, imundo e
desconfiado. Os olhares dos homens, os pensamentos dos homens, as mãos dos
homens e os corpos dos homens, aliciando outros corpos, aproveitando-se do
momento para propagar o assédio.
Sete
e meia e um pão comido com pressa na casa do patrão. A manhã
vai se perder diante de uma janela. Céu azul, poucas nuvens, pássaros
solitários que passam perdidos num décimo terceiro andar com IPTU e condomínio
atrasados. Oito e meia. Passa uma
pilha de roupa em um mecânico movimento triste. É ela e a pilha de roupas. Ela e
a solidão de uma manhã vazia, num apartamento cheio de aparos a serem feitos,
manchas no teto e ilusões de uma classe média endividada. Meio dia. Para. Esquenta no micro-ondas a quentinha. Ali o milagre
bélico da tecnologia. A comida é sem graça e sem gosto. Um macarrão no molho
pronto, um frango assado e uma saladinha. Saladinha,
não. Tomate e cebola temperados no vinagre e orégano. Nada dizem. Ainda. Meio dia e meia e ela para. Estica as
pernas numa varanda que bem que poderia ser sua e espera chegar a hora. Lava os
pratos de um patrão corrido, aquece no micro-ondas uma lasanha tão sem graça
quanto a vida. O patrão come, comenta duas ou três notícias, fala da ex-mulher,
do processo de divórcio, das eleições norte-americanas e depois parte.
Duas horas. A cara do patrão
ganha novamente o caminho da rua. Só será vista novamente amanhã de tarde. Passa
um cafezinho, separa as roupas, coloca na máquina enquanto passa uma vassoura
rápida na sala da casa. Separa o lixo. Guarda na geladeira as sobras da lasanha
do chefe. Talvez ele coma o restante
de noite, na volta. Quatro horas e
mais uma xícara de café para terminar o serviço. Sexta feira. Acelera um pouco
o passo para não perder o busão das cinco. Ônibus lotado, irmão pregando,
vendedor de pipoca. O cérebro desliga-se no corredor. O corpo se sustenta na
base do piloto automático. As pernas pesam por uma semana que não foi nada
leve. Dezoito horas. A lotação
carrega almas vazias em um ônibus destruído, velho, cheio de dúvidas. O caminho
é o mesmo e mata aos poucos. O medo do COVID, os corpos dos homens invadindo o espaço,
a solução pouco prática do pastor na rádio e a mesma música que não diz nada
numa sexta feira sem graça. O metrô, o metro e o medo. Os dez pães comprados na
padaria.
Dezenove
horas. Chegar em casa, esticar os pés num sofá carcomido
mas amado. Um filho trancado no quarto de cara emburrada e (mais um) jantar pra
botar na mesa. Fim de noite, passa a novela das nove sobre amenidades mas seus
olhos já não enxergam nada. O corpo se corrompe aos poucos enquanto um economista
fala em um idioma da confusão financeira. Mas a conta chega semana que vem e
pronto. Agora vai dormir mais cedo, fingir que se importa com as brigas dos
filhos, fingir que se empolga com o corpo suado do marido querendo afago, os
barulhos das brigas dos vizinhos, as sirenes nas ruas, os latidos dos cachorros
paquerando a lua e o despertador silencioso para um outro acordar cedo em mais
um dia de outubro.
Comentários
Postar um comentário