Coisas que um menino me pediu para escrever

 


Lá em casa todo mundo queria um cachorrinho. Todo mundo mesmo. Acho que foi por conta daquele filme do Beethoven, o cachorro que obriga os pais a também arrumarem outros Beethovens para suas casas, seus filhos e seus quintais. Também não sei bem, não sei de onde, mas tem essa questão de tradição (quase uma lei) que diz que ‘família que se preze tem que ter um cachorro, caso queira disputar um lugar no céu ou mesmo uma vaga num comercial de margarina’. Lá em casa não foi muito diferente disso.

O infeliz nem havia chegado e já alimentara uma desavença: qual seria seu nome de batismo? Minha mãe, convencida de que, no final das contas, seria ela quem ficaria com a missão de educá-lo, dar banho ou “panhá” a sujeira, quis lhe dar o nome de rabugento. Meu irmão mais novo exigia escolher um nome para o animal. Dias antes seu galinho de estimação tinha entrado na panela sem aviso prévio. O nome do galo? ‘Nopicha’. Não me pergunte o motivo. A ida prematura para a panela tinha feito a mente de nosso pai pesar. Cedendo aos caprichos dos pequenos, assinaria um tratado de paz naquela casa e, definitivamente, não se falaria mais na carne daquele domingo.

Mas ‘Nopicha’ não era nome de cachorro. Muito menos cachorro de família. Coloca Valente, Valete, Nanico. Campeão, Bravo, Atalho, Seiya de Pégaso e não se fala mais nisso. Que tal? Dizem muitas lendas que cachorro de pobre não liga muito para nomes. Mas um consenso silencioso aparentemente reinava ali: nome de pinto morto não batizava cachorro e pronto. Não adiantaria insistir. Além do mais, nosso irmão era o mais novo mesmo. No final das contas sua opinião não valeria muito ali. Aquilo não era uma democracia nem de longe. No final a decisão seria de ‘mainha’. Era dela a palavra final. Sempre. O nome do cachorro vai ser Xeique e pronto. Estava resolvida a questão.

Três dias depois e a coisa estava ainda mais estranha. Era preciso outro cachorro para fazer companhia ao cão primeiro, novo demais para governar uma caixa de papelão inteira. Estava decretado o sucesso de bilheteria teria continuação. Pior que sobraria pra mim uma responsabilidade que eu não queria. Lembro do dia em que ela chegou. Sim. Ela. É claro que todos os cachorros machos daquela ninhada já tinham sido levados. Lassie não tinha nada cinematográfico em sua cara, nem mesmo a escrita francesa ou o pedigree dos campeões. Lassie era vira-lata, amarelo ‘tô aqui’, focinho preto e duas orelhas parecendo mais asas de morcego caídas. Lassie pousou em casa dentro de uma caixa de papelão, depois de vomitar um macarrão branco que algum amigo do trabalho do meu pai lhe dera. Insignificante, ela parecia mais ter saído de um desenho animado. Gostei dela de cara.

Colocamos o nome dela de Lassie, pois esse era um nome perfeito para um cachorro. O cachorro do meu irmão, cheio de pompa, morreu. Lassie virou o xodó da minha casa. Mãe a tratava como filha, ela se entendia como dona da casa e sobrava pra mim dar banho, limpar a sujeira, preparar a comida e levar carão quando ela fazia alguma besteira. Lassie deve ter passado uns seis anos com a gente. Sofreu um acidente na linha do trem, passou quase um ano sem poder andar, voltou a andar por causa de ciúmes dos cachorros da rua, ganhou (e perdeu) todos os filhotes de sua primeira cria, nos fez sorrir incontáveis vezes e depois partiu de um jeito estúpido e inesperado, como todo animal doméstico desses filmes da Sessão da Tarde insiste em nos fazer assistir. Lassie me fez chegar atrasado numa festa de ano novo (a primeira que eu encarava depois de, segundo a minha mãe, estar velho demais para ficar em casa assistindo o Show da Virada com ela e indo dormir ), me ensinou a ter responsabilidade, a cuidar dos outros e me deu a primeira lição sobre perda, uma manhã perdida, minha mãe chorando desesperada, eu chegando da escola sem entender. Lassie se soltou da coleira (arteira como ela), comeu um veneno que colocávamos para matar os ratos e morreu de forma agonizante e triste. Não consegui dizer nada. Fazer nada. Fiquei ali a seu lado, alisei duas ou três vezes atrás de sua orelha como de costume e a vi partir, com aqueles olhos que me questionavam sobre o apego, sobre o sofrimento e sobre se acostumar com despedidas.

 

(2005)

 



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