Perto de um meio dia em
uma segunda feira e em pleno feriado de independência, num ‘novo’ normal pra lá
de ‘filadaputa’. Perto do meio dia, umas onze e pouca da manhã, eu indo para o
mercado pra sair com duas sacolas e liso. Hoje não vai ter o tradicional
desfile cívico. Toda aquela pompa foi engavetada após a franca e aberta
falência da economia e da saúde e do comércio e do presidente falando todo dia
uma merda. Mas hoje, perto do meio, logo num meio dia num feriado infeliz uma
cena belíssima chama minha atenção. Uma cena rebelde, conspirativa, renovadora,
subversiva e cheia de simbolismo.
Perto do meio dia uma
multidão bonita segue um caminho enérgico, uma procissão verdadeira, um caminho
de luz a caminho da praia em pleno feriado da independência. Outro dia desses
era o presidente negando a realidade numa reportagem da televisão. Ontem era um
artigo de umas dezessete páginas em um blog progressista citando uns quinze
pensadores do pensamento contemporâneo analisando milimetricamente a tensão do
ônibus lotado brigando com a imagem das praias dos ricos sendo lotadas por
ricos sem máscara alguma nem vergonha na cara. Mas a coisa é bem diferente na
periferia.
Na periferia, uma
multidão linda emerge da favela para ocupar a praia perto do meio dia. E é um
quadro lindo. Crianças de máscara ou sem máscara caminhando leves segurando a
canga da mãe, a mão da mãe, dos irmãos e seguindo sorrindo leve, um sorriso de
pura emancipação. A ida a praia hoje é uma questão de sobrevivência, uma
revolta sorridente, uma manifestação. Sabe os problemas ocasionados pelo
prolongado convívio da quarentena? Essa pauta não chegou na favela. Não da
maneira que sonha o teórico em seus livros na estante e em suas muitas lives.
Perto do meio dia e sem o auxílio, famílias
emergem livres procurando as águas calmas de Iemanjá, esquecendo as filas intermináveis
dos bancos, os palavrões nas lotéricas, o aplicativo que não funciona, as
contas que se multiplicam e a cara do presidente. Sim. Ninguém aguenta mais olhar
pra cara desse presidente. Mas praia está ali de fronte. Em frente só o sol e o
céu azul, a nuvem hoje não é cinza, não há chuva e, na praia, verdadeiro templo
democrático, os problemas da vida cotidiana são todos levados, elevados as aclamações
e aspirações e também os bronzes. E perto do meio dia, eu, que quando morava no
Sertão dizia que iria me reconciliar com o oceano assim que tornasse para a
Capital pernambucana, me pego traidor do mar, porém embasbacado com a
organização proletária, preta e periférica de nossa população.
Perto do meio dia mães
e pais, filhos e filhas e vizinhos (hoje não vai ter briga), com seus pares ou
seus pais, muito menos com seu país. Hoje a praia é o paraíso, o mar é a
consolação e Deus vai perdoar e abençoar a todos com os raios solares em corpos
disposto ao belo. Tudo perto do meio dia. Sabe o motivo, não? Perto do meio dia,
pois ali está a busca por um bom espaço na praia. Perto do meio dia por ser
economicamente mais viável. Se faz um almoço no grau (de preferência na noite
anterior), se ajeita as marmitas, colocasse a cerveja pra gelar. A mãe é quem
acorda antes de todo mundo. Ainda há ingratidão nesse paraíso. Os pequenos
ainda ajustam seus cérebros para a claridade que se impõe. Faz-se as marmitas.
Ajeita-se a família. Bronzeador fator dois mil, garrafa d’água, doce,
sanduíche. Reprodutor de Bluetooth tocando Raça Negra, Claudinho e Buchecha e
Molejão. Racionais MCs, Nação Zumbi, Conde Só Brega e Legião. Cabe tudo nessa
tarde subversiva.
Perto do meio dia você
dirá que isso é uma apologia ao genocídio, uma irresponsabilidade da parte
desse escritor, um afronte as regras sociais estabelecidas em defesa da vida e
do bem estar coletivo. Conversa fiada. A tomada da periferia ao imenso mundo
azul em nossos olhos é um ato de resistência, uma ode a esperança, um respirar
para a vida e uma constatação. Amanha, perto do meio dia são esses mesmos
rostos que lotarão os ônibus e metrôs do Recife ou do mundo. Lutarão pelo
sagrado pão de cada dia, que não cai do céu nem vai pra Disney, como alguns
pensam. Amanhã esses sorrisos de satisfação (mesmo que momentâneo. Não me
iludo) estarão escondidos por máscaras, olhares de medo (do vírus ou do futuro)
por uma pátria que os massacra cotidianamente sem lhes conceder sequer atenção.
Isso amanhã. Hoje não. Hoje é feriado. Guarde pra você o seu discurso. É um belo dia
de sol no país onde a independência é uma mentira e a morte nos ronda, vigia,
persegue cada dia, querendo levar nossos sorrisos e determinação. Hoje faz sol. E é um dia tão lindo.
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