Rotina




Tenho acordado legalmente cedo. Inutilmente o despertador está programado para as sete horas. Tenho acordado antes das seis e meia. Levanto, lavo os pratos da noite anterior. Passo uma garrafa de café. Minha vida pela manhã tem se resumido, filosófica e religiosamente a lavar pratos sujos. E quem dera que nos dedicássemos com tanta diligencia a resolver nossas pendências, limpar nossa sujeira, refletir sobre nossos ‘pratos sujos’. O café das sete é convidativo, salutar, saboroso e prestativo. Ligo o rádio, ajeito o café da manhã, separo a leitura matinal e reclamo junto a minha esposa. E é uma boa dica quando se tem que passar dias nessa rotina: ligar o rádio e destilar uns palavrões contra os absurdos dessa nação, que passou alguns séculos sem lavar seus pratos logo que se inicia o dia.
A vizinha de cima começa a varrer a casa pontualmente às oito e meia. Ela faz isso seis vezes no dia. Sim. Seis vezes. A primeira já foi. Perto das dez, largo o livro. Começa a empreitada do almoço. E essa hora deve ser uma das melhores horas do dia. Hora de se reinventar, variar os cardápios. Se ontem teve macarrão, hoje um arroz cumprirá seu papel de um jeito finíssimo. Assa uma carne, corta uma salada, coloca um orégano. O orégano resolve tudo. Onze horas. A vizinha começa de cima começa a varrer de novo a casa. Varre a casa e muda os móveis. Perto do almoço e ficamos sem muito assunto. A rádio fala sobre o futebol. E é incrível a insistência de alguns dirigentes em reivindicar o retorno dos campeonatos em uma situação dessas. Onze e meia. O almoço está quase pronto. Passo outra garrafa de café.
Pouco antes de o almoço estar pronto dá pra se ouvir os ventos conversando entre os corredores do meu prédio. Os ventos vêm de várias direções, sussurram entre si, falam em sua língua as notícias do dia. Que notícias trazem os bons ventos?  Dizem que lá de cima dá pra ver de tudo. Com um pouco de esforço olha-se os segredos das janelas, os mistérios dos telhados, o todo azul da praia. Dizem que não dá pra se ir muito longe. Chega um momento em que, se não se cuidarem, os ventos podem ser levados pra longe, alguns até esquecidos. Agora passam por nossas janelas e riem. Tentam pegar os brinquedos de nossas crianças espalhados pelo tapete. Por causa do rádio, vão embora. Não ficam. Talvez não suportem o tempo, o tédio, as más notícias que trazem as ondas do rádio. Meio dia. O almoço está pronto. Mesmo com o suco e o calor o café é quem anima o fim do dia que passa. Mais um dia.
Depois do almoço, o sono da quarentena. Mas o calor não deixa. A vizinha do outro andar acende seu cigarro. Alimenta um câncer, um enfisema pulmonar, dois ou três dentes podres. O motivo que a leva para a janela, no lugar de fumar sozinha seu cigarro do capeta não se sabe. Nunca saberemos. Mas o incenso do demônio penetra em todo o apartamento sem deixar tomar calma. Antes da quarentena discuti com ela umas duas vezes pela janela. Xinguei feio. Daqui a pouco vão passar os ‘meninos’. Sem aula, sem escola, sem muito que fazer, passam o dia tossindo, entre um prédio e outro. Duas da tarde. A vizinha de cima começa a varrer de novo. reparei que ela sempre fez isso, antes mesmo do Covid-19 mostrar pro mundo que o capitalismo não deu certo. A essas alturas já tomamos uns dez banhos. Junte a quarentena, as fake news, a fumaça da vizinha, o varrer e o mover de móveis e o calor bestial do Recife e você terá um pouco o cenários desses dias.
Duas e meia. Pego o meu gibizinho. Se ler é bom, reler os clássicos da Marvel, DC, Vertigo, Dark Horse e etc. é ainda melhor. Três da tarde. Dois ou três biscoitos para preencher a tarde. A garrafa d água é um alento. Se o calor deixar, tiro uma soneca de meia hora. Quarenta minutos. Os meninos passam gritando na janela. Ainda tossem. Tossem muito. Tossem e soltam muita fumaça. O gibizinho é um alento em dias de pandemia. As cores e os traços renovam a vista, quando a paisagem da janela é uma caixa de concreto onde um gato passa o dia inteiro. Dezesseis horas. Advinha quem retoma o trabalho com a vassoura? E ela vai fazer isso mais duas vezes. Por volta das nove horas e (acredite) as duas da madrugada. De madrugada, aliás, ela derruba alguma coisa, arrasta alguma mesa, liga um ventilador que mais parece uma britadeira e varre novamente. Os pratos do almoço são lavados antes do jantar. Passo mais uma garrafa de café. A terceira do dia. Passo a escrever. Um dia, quando morrer, até minha esposa vai ler as coisas que eu escrevo. Vê que ambição: meu blog vai ter uns trezentos leitores, sabe? Por volta das vinte e uma hora vou jogar o lixo. É a melhor hora pra isso. O gato tá lá deitado. Nove horas é o melhor horário para jogar o lixo fora. As pessoas não sabem jogar seu próprio lixo. Até outro dia não sabíamos nem lavar as mãos. “a gente não sabemos escolher presidentes”. Entre fumaça de cigarro, fumaça de maconha, barulho do vento e duas ou três xícaras de café e algumas palavras, sigo. Meia noite. Hora de dormir. Antes, mais um banho. Não é possível dormir nesse abril sem chuva sem tomar um banho antes. Um ou dos episódios de alguma coisa na netflix. Três ou quatro mensagens no ‘zap zap’, uma playlist para conduzir bem o sono. Amanhã, não sei que dia vai ser, teremos mais pratos para lavar e mais garrafas de café e palavras pra preencher.
   

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