Em tempos de
quarentena, o ponto alto de minha semana é, sem dúvida, a ida a padaria. Não que
seja lá grande coisa. Talvez você esteja me imaginando todo aparatado, com uma
roupa daquelas de astronauta ou que o trajeto para cumprir o mandamento do
sagrado pão de cada dia, que nesses tempos não precisa ser tão cotidiano assim.
A ida até a padaria também não parece (nem de longe) com nenhum dos filmes do
Peter Jackson. Da minha janela não dá para se debruçar para ver o mundo. Da
minha janela só dá pra ver um gato, que passa a noite dormindo. Mas a padaria,
que fica na esquina de casa, não é algo tão ousado nem tão épico assim.
Dobrando a esquina uma
cena chama atenção e acorda os olhos: um senhor, que chamarei aqui de Valdir,
literalmente rodopia antes de cair no meio da rua. Em sua direção, uma
caminhonete se dirige, com o motorista aparentemente distraído. Da padaria a
atendente corre em direção à ajuda. Respondo quase que imediatamente. Seu
Valdir, que era a cara do Gérard Depardieu saído do filme do Astérix, nos deu
um trabalho para levantá-lo, trazê-lo de volta a padaria e o encostar numa
cadeira. Demorou um tempo até Seu Valdir tomar fôlego, se recuperar do susto e
ligar para sua esposa. Passado o susto, duas verdades sobre Seu Valdir: nosso
amigo de susto sofre de labirintite e estava, em plena quarentena, abrindo os
trabalhos para uma Semana Santa, tomando uma bicada na esquina.
Sim. Seu Valdir, no
alto de seus mais ou menos 60 anos, tinha tomado todas em plena Sexta feira da
Paixão. Seu Valdir se juntou a esse seleto grupo tão falado nesses dias de
Covid-19: os velhos. A ida na padaria, um pulo no mercado, uma visita a
farmácia e sobretudo a carga de notícias que recebemos em nossos lares, trazem
a tona a situação de nossos idosos. O “fique em casa” mescla-se com perguntas
como “que é que esse senhor tá fazendo aqui no meio da rua?”, “gente, que
absurdo, uma senhora idosa andando na rua desse jeito?”. De repente os velhos
passaram (ou voltaram?) a ser notícias. Incomodo ou preocupação? Será que
estamos mesmo vendo esses velhos todos na rua ou será que eles, simplesmente
deixaram de ser invisíveis?
Como a história lá do
gato que (juro) passa a noite dormindo, os velhinhos agora incomodam-se com o
incomodo da sociedade. Talvez até mesmo você, que nem leu o texto todo e já se
aborreceu com o fato de chamar de velhos nossos idosos. Sim. Como são teimosos.
Parece que nos criaram, não é mesmo? Nossos idosos moram sozinhos, sempre pagam
sozinhos suas contas, enfrentam as filas arrogantes dos bancos e das lotéricas,
enxergam calados a negligencia dos
motoristas, o falso sono do adolescente sentado numa cadeira reservada no busão
lotado, o telefone do filho, sempre ocupado para atender mas muito dinâmico em
seus perfis nas redes sociais (essas, aliás, que é coisa que velho não sabe
usar).
Daria até um filme, um
bom romance, um livro. De repente, do
nada, uma parcela invisível passa a ser encontradas andando nas ruas. E Seu
Valdir tá lá. bebinho em plena Sexta Feira da Paixão. Disse para a esposa que
iria comprar pão. Demorou um pouquinho. Não estou dizendo que Seu Valdir está
certo. Talvez nós, como numa espécie de cegueira coletiva, passamos todos esses
anos sem ver esses seres mágicos, ignorando a chegada da indesejada das horas,
já que é mais fácil colocar a culpa na bebedeira de um coroa, na preguiça de um
gato, na incompetência de um governo
do que, junto com tudo isso, aceitar que nós é que estamos cegos. De verdade.
Parabéns sábias palavras
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