Armando: Crises em Tempos de Crises. . .




Tempos de crise, acorda João com um gosto amargo e urgente na boca. Pensa há dias. Matuta consigo e com seus botões. Depois de três anos de desemprego, seis meses de humilhação, devendo dinheiro até a sogra, chega a uma conclusão. Decide: “não voltaria pra casa sem o leite das crianças”.
“não voltaria pra casa sem o leite das crianças”. Os versos do poeta viam lhe tirar o sono na cama. Bajulou o cunhado, pegou dinheiro a juros, pendurou o aparelho de DVD e o relógio da filha, presente de aniversário do ano passado. Foi na Feira do Troca, comprou um 38 enferrujado e uma toca ninja, decidiu arrebentar a boca do balão. No melhor estilo Dick e Jane iriam viver de assaltos, furtos, roubos e afins. “se nem o presidente escapa da lista, quem dirá eu?”. Mas não era bem assim. A Jane, na vida real, chamava-se Marta, frequentava a Assembleia de Deus e não admitia roubo, palavrão nem tão pouco cinema ou televisão. Na cabeça dela, o filme do Edir Macedo, Nada a Perder, era uma blasfêmia. Cinema não era coisa de Deus. João não via bem assim. Três filhos pequenos, três anos fazendo “bico” e os joelhos cansados de tanto fazer oração. Resolveu apelar.
“não voltaria pra casa sem o leite das crianças”. Quinta feira. Seis de agosto. Espera numa esquina o primeiro ser humano a passar. Tomou 3 doses de pitu, com coca, pra relaxar. Botou cassaco com capuz, estiou a chuva embaixo de uma árvore. “se cair um raio morro de uma vez”. Passavam coisas em sua cabeça. Tudo de uma só vez. Aí, do nada, passa um cidadão apressado, com uma mala na mão. Treme todo. “passa a grana”. Tem não. “mão na cabeça”. Também não. “passa o celular”. Também nada. “me dá essa mala, então”. Quase que o cara vira uma estátua. Repete o não. Do nada, fúria. Acerta uma coronhada na cabeça. Corre na chuva. Pensa em voltar, pedir desculpas. Volta não. O mote ainda se repete na sua cabeça:
não voltaria pra casa sem o leite das crianças!”
Pega um taxi, salta duas esquinas depois. Guarda a mala. Quase se arrepende de ter feito aquilo. Teria o rapaz, tão bem vestido e apressado, se ferido? Toma um banho. Bota um cuscuz, frita um ovo, faz de tudo para não acordar a mulher e os filhos. Três dias depois abre a mala. Era tanta nota de cem, tudo novinha, que não tinha se quer noção de quanto que tinha ali. Desmaiou na hora. Não antes de soltar, baixinho, um bom e velho “puta que pariu!”
                                                  (atenção!  Essa bronca Crise continua)




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