Intolerância






   SEXTA FEIRA. Depois de uma semana sendo moído pelas idas e vindas do chamado transporte público, sigo para casa. Como quase num milagre consigo um assento vago em plena Conde da Boa Vista.  Quase chego a admitir a possibilidade real de que deus possa existir em algum lugar, me olhando. Por falar em deus, estamos em plena ultima semana eleitoral. Daqui a alguns dias iríamos decidir (ou não) quem iria para o famigerado Segundo Turno para as eleições presidenciais no país do deus nos acuda chamado “brazil”. Em meio a tanta palhaçada, falsas facadas, candidatos bizarros e loucos, um ateu convicto clamar por algo superior parece nada inusitado. Sexta feira moída e eu me assustando com o tal do cabo daciolo. E eu não me atrevo escrever certos nomes com maiúscula nem a pau. Pra esse escritor anônimo, envolto em uma aura de puro desconhecimento, momento extremamente conveniente, ousar esse tipo de coisa é maravilhoso. Garanto que meus dois leitores (Mainha e Michele) não irão reclamar desse mero detalhe. Afinal, era uma sexta feira e, dizem, deus perdoa todo mundo na sexta, já que ele também sai de folga nesse dia.
    Mas é SEXTA FEIRA.  Antes de pegar o milagre em forma de busão em plena Conde da Boa Vista, “dou um pulo” na Banca Guararapes para pegar uma inocente gibizinho. Nem só de pão vive o homem. O nome da HQ é bem sugestivo: Lúcifer. Sigo sorrindo sentado em meu universo milagroso chamado 071-Candeias. Pra quem diz não ver milagre algum nisso, convido pegar qualquer transporte público em plena Conde da Boa Vista entre 17hrs e 19hrs e ter que se deslocar uma hora e meia, em pé, em plena sexta feira. Garanto que tu muda de opinião ou eu mudo de nome. Bolsa no colo, eu flexiono os músculos das costas num esforço quase evasivo e inútil de relaxar depois de uma semana de “Não senhor”, “sim senhor”. “esse assunto é pra fazer aqui”, “né pra levar pra casa, não!”.
Mas é SEXTA FEIRA. 
   Mesmo. Amanhã, se deus quiser, pernas esticadas no sofá da sala, ventilador ligado, rádio ligado ao som dos Paralamas e aqueles três gibizinhos recém saídos do forno irão me acompanhar num tenro, doce e macio passeio pelo mundo da Nona arte pela manhã, inclusive o do Lúcifer. Esse, aliás, é o mais aguardado da semana, do mês ou da vida. Bolsa no colo, eu paro para “sacar” as capas das revistinhas. Todas (três somente. Juro por ele. Odin) ainda no plástico. Uma rápida olhadinha antes de saborear o meu sábado. Chego nem a tirar do plástico. De repente, ao meu lado, uma jovem, quase da minha idade, me olhando com aquela cara de quem de alguma forma já morreu, coloca o dedo na minha cara e diz: “você vai mesmo ler isso aí?” pronto. Estava decretado o fim da minha sexta.  
   SEXTA FEIRA e ela, a Bárbara, 23 anos, crente da Batista Renovada, estudante do sexto período de psicologia (sim. Em menos de cinco minutos ela já tinha me falado quase toda a sua vida) me instruía, aconselhava, admoestava, enchia o juízo pra me fazer, acho, jogar fora a revista que acabara de adquirir, depois de esperar solenemente por semanas, isso sem encher muito o saco do pobre Orlando, dono da banca e portador de uma calma e paciência de um deus de Asgard.
    Como se não bastasse o preço das revistas em época de crise, não bastasse a maldade da Panini em nos vender as revistas custando os olhos da cara, como não bastasse a péssima distribuição das HQs para o público consumidor do Nordeste, como se não bastasse o trânsito do Recife, o caos da Boa Vista, o preço da passagem, o medo do assalto, da batida na estrada, do semáforo viciado, da polarização, do eleitor idiota do bolsonaro, do eleitor enganado do bolsonaro, do fascista na rua defendendo o bolsonaro e de todo o cansaço da semana e da vida, vem a irmã, quase me tomar a revista das mãos só por não ter “ido com o título’, ter se incomodado com a talvez afronta a sua crença de verdade absoluta ou a mera falta de noção. A vontade que deu foi de. . . você sabe. mas ainda restava um pouco de fé na humanidade, restava um pouco de esperança no esticar os pés no sofá amanhã, num esquecer aquela fanática hedionda que me dizia,entre outras coisas, que aquilo era idolatria, que eu iria para o inferno caso continuasse idolatrando o diabo e que o bolsonaro, por sei lá qual motivo, estava mesmo certo, que o comunismo era coisa do diabo e estava distribuindo revistas ensinando as crianças a idolatrar satanás e que eu deveria me voltar pra deus, se eu quisesse ser salvo.
   Ufa! Plena SEXTA FEIRA e eu exercitando pacientemente (ou por falta de forças mesmo?) a tolerância, coisa que faltava a jovem Bárbara, 23 anos, crente da Batista Renovada, estudante do sexto período de psicologia (sim. Ela agora gritava no meio de um ônibus lotado, isso depois de eu ter tentado, creio que em vão, lhe explicar de onde vinha tal revista, que aquilo não tinha NADA A VER com a sua religião, e olha que eu nem me esforcei pra dizer que estava, por acaso, cagando e andando pra crença dela).
    SEXTA FEIRA lotada e a jovem agora pregava no meio da condução lotada, espalhando caras feias entre os usuários, enquanto eu aumentava o volume do meu fone de ouvido, educadamente. Sim. Ela havia ignorado o fato de eu estar ouvindo música nem ter respondido se estava ou não interessado do que Jesus teria, supostamente ordenado dela fazer.
   Pra quem conhece o Recife, segue o itinerário: ela pegou o carro em plena Conde da Boa Vista, sentou-se ao meu lado, e foi falando, gritando, xingando as religiões de matriz africana, os católicos e toda as religiões e denominações que não fosse a dela, até descer em frente ao Shopping Guararapes, isso em Prazeres. Pois é. Ela tornou a volta pra casa num verdadeiro inferno. Agora sim eu estava com uma baita dor de cabeça e sem saco para se quer tomar aquela cerveja. Odin nos proteja. Ao descer, a paz voltou a reinar naquele ônibus novamente. Uma senhora de idade, cerca de duas cadeiras a minha frente, desabafou: “meu filho, não sei como você não mandou aquela menina se lascar!” “eu tava quase parando o carro e mandado descer”, disse o motorista. “eu sou crente, mas não faço esse tipo de coisa, nunca”, murmurou outra jovem atrás de mim. Mas agora, em casa, não importava mais. 
   As forças da natureza haviam levado aquela benção pra bem longe. A dor de cabeça durou até o domingo de tarde, e se prolongou pelo resto da semana que entrou. No sábado, como prometido, realizei o meu torpe e diabólico ritual: estiquei os pés, deitado num sofá muito do maroto, tomei aquela cerveja geladíssima, li as três mirradas revistas e tirei um bom dum cochilo depois. “deus, eu pequei. Perdoai aquela jovem; ela não sabia o que fazia”. Meu cantinho no inferno, sem dúvida, está me esperando. E sigo. O motorista virou meu amigo. Sempre que me vê pergunta pela “irmã” e me chama de “Jó”. Eu continuo lendo minhas “revistinhas” e reclamando dos preços abusivos da Panini, daqui e dali combatendo de alguma forma certas intolerâncias. Mas a Bárbara, sem dúvida, deveria ler também alguma coisa. Não sei se o gibi do Lúcifer. Talvez a bíblia.

Comentários

  1. Acho que nas profundezas do seu inconsciente tem um crente reprimido. Acho que você deveria fazer terapia, mas da escola de Jung, acho que no fundo você não é ateu. Lucifer também é a estrela da manhã, como Jesus, e muitos chegam a Deus por esse caminho. A vida em Recife é isso...e agradece a Deus por não ter que pegar o metrô nesse horário, seria bem pior.

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  2. Não tenha dúvida! Ela precisa ler a bíblia. Ela é mais ateu que tu, e reprime pregando o contrário desesperadamente. Ela estava projetando em você o que ela carrega no inconsciente. Essas representações excessivas são o que Jung chama de persona, a máscara que se usa para esconder quem realmente somos.

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