Teatro (Rascunho)





Uma família Di-vi-di-da
(Rascunho feito em 2017. Não chegou a ser montado)


A ideia central que me foi pedida:

Uma família “tradicional” vivendo em seus “mundos” dentro de uma pequena casa suburbana tomada por silêncio e barulho. A ideia¹ é mostrar que uma família considerada “normal” não é tão normal assim, e que os percalços do cotidiano afetam diretamente nosso convívio e estão intimamente ligados com as dificuldades de nosso cotidiano social: estresse, nervosismo, falta de empatia e de diálogo estão presentes em nossas casas e influenciam em nossas decisões e posturas, muitas delas que são levadas para nosso convívio social, trazendo consigo enormes dificuldades e problemas sociais. A ideia² aqui é trazer uma reflexão sobre como isso nos afeta e como somos vítimas (e por que não culpados?) dessa rotina tão desumanizadora em que estamos inseridos. Dito de outro modo seria uma espécie de sombra da Grande Família.


Enredo:


Numa casa pequena, pai e mãe dividem com um casal de filhos e um cachorro invisível seus pequenos espaços. Cada um na sua, cada um concentrado em si mesmo, levados, mesmo sem se perceber, pelos problemas da vida.


Personagens:


Pai:
Seu Edgar- Deve ser interpretado por uma mulher. É Porteiro. Usa sempre roupa social, camisa de manga cumprida dobrada, um óculos na ponta do nariz e carrega consigo um jornal. Gosta de ver os telejornais e as notícias no rádio;

Mãe:
Dona Marta- Deve ser interpretada por um homem. É dona de casa. Sempre com cabelo preso, um avental, pano de prato no ombro, fone de ouvido e tablet na mão. Divide-se entre os serviços domésticos e o gerenciamento de suas redes sociais. Adora usar o “zap zap” para falar com as amigas;

Filho:
Davi- “nem trabalha, nem estuda”. Passa o dia sentado no sofá “filosofando”. É meio EMO, mas gosta de Pagode. Seu visual deve ser bem roqueiro, apesar dele só falar e citar letras de pagode e sertanejo universitário;

Filha:
Carla Miranda- Estudante de cursinho pré-vestibular. Sonha em fazer medicina. Sempre usa farda do cursinho “tente outra vez” e está sempre com a cara (literalmente) nos livros e nas apostilas. Não tem celular nem redes sociais;

04:
Cachorro da família- Ele não aparece. É invisível. Mas é o elo da família pela sujeira que faz as coisas que rasga e etc.;

Marília:
Namorada de Davi. Deve ser interpretada por um homem. Universitária. É a musa inspirado do filosofo Davi e vive cobrando dele que ele saia do sofá;

Entregador de contas:
O elo com o público. Com uma farda (macacão, boné com o nome “entregador de contas” em ambos) e uma maquiagem de mímico, ele vai entrar recitando e aproximando o público com a trama.

Obs.: todos os personagens devem estar devidamente maquiados. Muito maquiados mesmo. Algo meio circense.


Cenário:

 -Uma sala de uma casa, se possível, com porta e janelas.
- Uma TV (feita de caixa de papelão grande, com o meio aberto e decorado);
- Um sofá (onde Davi fica deitado todo tempo);
- Uma cadeira de balanço pro seu Edgar;
- Uma mesa com um rádio.

Obs.: a cozinha e o quarto (onde ficaram mãe e filha – propositalmente- não aparecem)

Trilha sonora:

- Família, (dos Titãs) para abertura e encerramento. Falta acrescentar mais músicas. Seria bom se as atrizes/atores pudessem fazer isso.
Uma Família Di-vi-di-da

Cena um:

(O Pai está sentado na cadeira de balanço, de frente pro público, com o jornal aberto. Não se consegue ver seu rosto. O filho está ao lado, deitado no sofá com o braço tapando os olhos. A mãe passa de um lado ao outro do cenário, com uma vassoura na mão e o tablet na outra, com o fone de ouvido. Em seguida entra a filha com a cara num livro, bolsa nas costas, canetas na mão enquanto toca a primeira parte da música e o refrão. Isso deve durar uns momentos, enquanto a música toca, as luzes se acendem e as cortinas se abrem. A deixa para iniciar o texto vai ser o barulho, quando chega o entregador de contas batendo na porta. É uma espécie de apresentação dos personagens. A primeira batida acorda o filho (que tira a mão do rosto, mas não se levanta), a segunda tira a concentração do pai, que baixa o jornal com uma cara feia, olhado pra porta e na terceira ele entra recitando e falando com o público).

Entregador de contas (sempre se dirigindo ao público) entra cantando:

- “minha vida é andar por esse país, pra ver se um dia descanso feliz”. . .
Quem conta um conto aumenta um ponto. E eu vou contar pra vocês não um conto (suspense), mas uma conta. Não uma conta de dois mais dois, ou uma conta da carochinha. . . Eu vou contar a conta d’água que acabou de chegar e veio quente.
(sai de cena, fazendo cena. Dançando).

Pai: (lendo do jornal):

- “Conta d’água vai aumentar 300% nesse mês de “fechou”. Quem tiver sua conta que conte porque cantar, daqui pra frente, num vai adiantar muito não. (levantando da cadeira depois de dobrar o jornal e o colocar em baixo do braço). Eu vou é ligar a TV. Vê o que me resta, sentir um pouco de medo na televisão.
(liga a TV – uma caixa de papelão grande, com uma abertura no meio e enfeitada com desenhos que lhe mostre seus botões, marca e etc. o entregador de contas deve aparecer na TV, com uma gravata, noticiando.).

TV (Entregador de contas):
- E, atenção: a conta de luz também aumentou. Aumentou também o gás e o feijão. Vai aumentar o leite e o pão. Vai aumentar também o queijo, o ovo, o bolo e a torta, a farinha e o açúcar... Vai aumentar também o fubá e o café. Depois te conto (piscando o olho). Mas não vamos temer! Só não vai aumentar o salário, porque esse já tá muito alto: um metro e setenta e quatro e esticando mais. E já que eu estou aqui mesmo, vai aumentar também a sua paciência. Recomenda o ministério da saúde.

Pai (jogando o jornal no chão e pisando “a lá seu Madruga”):

- Aí foi a gota d’água! Só quero saber quem vai aumentar a minha paciência, meu Deus!
Davi, meu filho (sacudindo o filho no sofá, que continua com o braço no rosto) você não escutou isso, não, filho? E você continua aí, vivendo de filosofia?

Filho (ficando sentado no sofá, de frente pro público):
- “Se eu quiser chorar, problema meu. Quem perdeu você fui eu. Me deixe aqui no meu cato só. Se eu me machuquei, problema meu. Quem acreditou fui eu. Me deixe aqui no meu canto só”. (volta a deitar)

Pai (sentando novamente na cadeira de balanço):
- Marta! Ajuda esse menino, Marta. Ajuda que a coisa tá feia.

Mãe (com uma panela na mão e o tablet na outra):
- Que foi Edgar? Tu agora só vives me chamando. Ai eu tô no meio de uma conversa com dona Marisa e vem tu me aperrear? Tu queres fazer o almoço? Tu já fizeste alguma vez na vida o almoço? Tu sabes o que cozinhar? Tu num frita nem ovo, Edgar. Tu num sabe nem fazer miojo, Edgar! Tu só sabes ficar aí lendo esse jornal requentado, de ontem e reclamando da vida. Tu num tem facebook, não, “mizera?” te anima! Vai ver uma série, vai adicionar uns amigos, botar umas fotos no “insta”. . . Vai se animar. (Pega o tablet, ajeita o fone de ouvido, dá as costas pro marido). Calma, dona Marisa. Isso vai passar... Era o besta do meu marido reclamando, de novo, de nosso menino. . . Eu vi. Num falei? Esse sítio num é dele não. Isso num tá com nada. . . (fala enquanto vai saindo da cena) eu vou te mandar aquele vídeo que eu te falei. Foi. . . Foi Padilha que disse aquilo, mulher, tu num visse?

Filho: (levantando vagarosamente, quase como um zumbi dessas séries da TV)
- “Quem é você, pra dizer o que diz por aí? Pra julgar o que sinto no fundo do meu coração? É... você não sabe da minha tristeza. Você não sabe de mim!” (volta a dormir).


Começa uma música (‘Pense neu’, sucesso na voz de Gonzaguinha e Luís Gonzaga) em seguida entra Marília, namorada de Davi, com uma colher de pau na mão.
Marília: (sacudindo Davi)
- Acorda, Davi! Uma hora dessa e tu ainda tá deitado? Vai terminar feito ontem: duas da tarde e tu deitado eternamente em berço esplendido. (pausa. Olha de um lado a outro da casa como que procurando algo) cadê o 04? Onde tá tu, 04? Esse cachorro aparece e some assim, do nada! Levou ontem meu jornal; eu pus aqui, hoje já fez cocô na entrada da casa, amanhã vai fazer sei lá o quê e tu aí dormindo, Davi? Acorda homem!

(faz uma pausa. Põe a mão no ouvido como se quisesse escutar alguma coisa. Enquanto isso Davi se levanta, se espreguiçando lentamente.).
Davi: (fazendo uma careta):
- o que é que eu vou fazer com essa tal liberdade, se estou na solidão pensando em você? Eu nunca imaginei sentir tanta saudade, meu coração não sabe como te esquecer. Eu andei errado, eu pisei na bola”... (volta a deitar, ignorando a namorada).

Marília: (descobrindo Davi completamente)
- Bora, vagabundo. . . Qualquer dia desses eu te deixo aí, tu vai ver! Nem a tua mãe vai lembrar que tu passas o dia inteiro socado nesse sofá! Tu vai ver...

(Davi se levanta, dando um de sonâmbulo, e, ainda com os olhos fechados, recita mais uma “poesia”)
Davi:
- Como é que uma coisa assim machuca tanto, e toma conta de todo o meu ser? É uma saudade imensa que invadiu meu coração, é a dor mais funda que a pessoa pode ter”...
(volta a se cobrir e deitar. Marília sai de cena, sacudindo a colher de pau. Entra a mãe, com um fone de ouvido e saltitando de felicidade. Deve estar tocando “Maresia”, da Adriana Calcanhotto).
Mãe:
- Bem que eu disse que não era pra gente criar essa peste desse cachorro. Parece mais que é invisível! 04? Cadê tu, 04? Bagunçou o lixo todinho da cozinha, essa febre do rato! Agora tive de parar no sexto episódio da minha série por causa desse cachorro miserável! 04 sua peste, cadê você?
(pega o tablet, olha alguma coisa nele, sorri. Alguém bate na porta. É o entregador de contas).

Mãe:
- Eita que é tu de novo é? Qual é a má notícia que tu trás dessa vez?

Entregador de contas: (fazendo uma espécie de sapateado estranho à lá Chapeleiro Louco):
- Trago uma coisa pra contar: a conta da padaria! Seu João lhe pediu pra lembrar, com quantas penas se faz uma galinha. ‘Eu’ bota ovo, que vai no trigo, bem de mansinho, fazer o pão nosso de cada dia, que se passar de meio dia, sem a conta quitada, vai virar ilusão!
(se volta para o público, faz o sinal de agradecimento. Entrega a conta e vai embora, do mesmo jeito estranho que entrou: dançando).
Mãe:
- Edgar? Tá vendo isso, Edgar? Essa tal chegada de conta ainda vai me endoidar! Responde alguma coisa, homem!

Pai: (entrando com o jornal na cara, novamente)
- eu disse mil vezes pro Davi cuidar do cachorro, levar o dinheiro pro Seu João na padaria, estudar aquele capítulo do livro que cai na prova do ENEM, deixar de dormir o dia inteiro, cuidar mais da Marília, ajudar mais você nos serviços de casa, aguar as plantas do quintal, ser alguém na vida. . . Ufa! (senta no sofá novamente). Mas o 04 eu num vi hoje, não! Ontem eu gritei com ele por ele ter comido meu sapado novo; deve ter sido por isso que ele desapareceu... Parece mais que é invisível!

(entra a filha, Carla Miranda, com a cara num livro grosso, igual ao pai faz. Senta em cima do irmão, que não se levanta e permanece como está. Ela nem nota que sentou nele.).
Filha: (falando quase sozinha, meio sussurrando):
- b²-4ac. Delta “S” sobre delta “T”, quem descobriu o Brasil foi um ET, etevaldo era o seu nome, Napoleão abriu uma budega, depois virou crente, abriu uma igreja, ficou meio demente, casou com dona Leopoldina, foi pro paredão antes da final porque não votou em Machado de Assis. . .
Pai: (sem tirar a cara do jornal)
-filha?
Filha: (idem)
-pai?
Pai:
-tudo bem?
Filha:
-tudo. E você?
Pai:
-tudo.
Filha:
-que bom!
(entra o entregador de contas, dessa vez na ponta dos pés)

Entregador de contas:
- eu quero contar um conto. Posso? (voltasse ao público) um mais um é? Dois mais dois são? Três mais três são? (pausa) isso mesmo! Tenho oito contas novas aqui pra você contar e pagar, meu caro Edgar! (sai do mesmo modo que entrou).

Edgar (dando um pulo da cadeira):
- oito contas? Tudo isso? Mas, três mais três num é oito, nem aqui nem na China.

(Davi, ainda de olhos fechados, levanta e liga a televisão. Aparece o Entregador de contas, vestido de apresentador de telejornal).
TV (entregador de contas):
-não temam, nem tremam! Por causa da dona crise, resolvermos xerocar as contas pra todo mundo pagar. Como a tinta tá cara, tivemos que
Mudar um pouco os valores, mas, não se preocupem: vocês vão receber as contas novas, coloridas e mais caras logo, logo. . . Até mais! Ah! Antes que eu esqueça: o ovo e o cuscuz também vão aumentar!

Pai: (enfiando a cara no jornal)
- 04? 04? Onde está você, 04, pra me consolar? (levantando-se e voltando-se para o público) minha gente: a crise tá feia. . . A coisa tá braba, e o cachorro resolveu desaparecer. . . E agora?

(ouve-se um latido que começa baixo, depois vai aumentando. Fim da cena um. baixasse a luz e as cortinas).

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