O Penúltimo Idiota


    


     O telefone ainda não tocou. E são seis horas da manhã. Mas não era qualquer tocar do telefone. Era o fazer barulho. O telefone já não tocava. Aquele aparelho, aliás, já nem se chamava mais telefone. Ligação era da mãe, vez em quando, ano em ano, dia de aniversário, corpus Christi, carnaval ou fim de ano. O telefone agora tomara o lugar da televisão, do sono, do sexo e até da rua. E às seis da manhã, em plena segunda feira, não receber os likes e as atualizações, aquele barulho logo de manhã, o pegar no celular antes de sequer abrir os olhos, dizer bom dia bocejar. Acabaram os likes. Isso causou estranhamento. Isso porque as pessoas querem ver números, quantidades, alimentarem seus egos logo cedo, saber que o mundo, logo de manhã, não se acabou. Assim, pai e filho se falam pelo smartphone antes de se olharem na mesa do café da manhã. Minto; eles nem se falam mais ao vivo.       Ele e esposa haviam trocado o sexo na madrugada. Ela agora maratonava séries na netflix, ele conversava com a amante pelo snapchat. Às escondidas, colecionava vídeos pornográficos- até de crianças- para satisfazer, não um vício, uma doença, uma tara. Já não se importava em receber o contato humano. Isso tinha um nome diagnosticado, lera isso em algum lugar, num blog qualquer desse. Aquilo lhe preocupou, não sejamos mentirosos, por inacreditáveis cinco minutos nas primeiras horas que abriu o facebook. Depois esqueceu. Claro. A nova notícia do momento era o fato de um jogador famoso ter estuprado uma mulher ou não. Aquele assunto sim era normal. Tão normal quanto os muitos memes que recebera em sua conta no telegram. Não lembra o que comeu de manhã, mas se alimentou, postou uma foto saindo de casa com a família. Iria levar o filho para a educação física, depois deixar a esposa no trabalho e seguir pra academia. Vocês não viram? Tá tudo lá. Ele postou uma foto com todo mundo sorrindo no carro. A mulher disfarçou bem o fato de seu marido ter esquecido seu aniversário. 
     Hoje cabe ao facebook fazer isso. E fez direitinho. Durante a foto na academia ele recebeu a notificação. Ele passa vinte minutos na academia, fazendo hora, depois posta umas fotos em todas os seus 20 perfis nas redes sociais com uma infinidade de “#” e conta, contava, cada like obtuso que ganhava. Pouco importa quem curtiu. Quem foi. Se humano, robô ou não. Tem metade de seguidor que não sabe nem quem é. “nunca nem viu!” admite que já aceitou diversos convites para eventos aleatórios, só pra se sentir por dentro e, sim, já comprou likes para impressionar, comer e casar com uma mulher, mesmo sendo homossexual, só para não admitir a realidade para a família, só para esconder sua diagnosticada e aguda depressão. Por ela (elas. esposa e depressão) faz questão de ir aos domingos para a missa. Não perde uma.
     O telefone ainda havia tocado, não havia feito seus respectivos barulhos matinais e Alcebíades achava aquilo estranho, pra variar. Eram mais de meio dia e aquele silêncio anônimo o perturbava. Agora aquele seu maior ultimo pesadelo do momento o perturbava, toda vez que passava as madrugadas maratonando séries sem graças ou complicadas demais, ou assistindo vídeos infindáveis de sexo sem importância, masturbando-se inveteravelmente enquanto sua esposa, fazendo o mesmo com seu Smartphone, esperando mais uma meia hora na academia, meia hora na cafeteria com as amigas, fotos de xícaras vazias enquanto aguardava um direct de Tomás, filho de sua melhor amiga, agora seu amante, garoto de programa, viciado em antidepressivos com cachaça e estimulantes.               Dezenove anos mais só trepava bem quando tomava um “azulzinho” qualquer. Tinha os olhos mais azuis que já se viram, mas se achava feio. Possuis meros trinta e dois mil seguidores somente e aquilo já o estava esmagando, oprimindo, deixando pra baixo até se sentir como um lixo. No dia em que Maria (tem nome mais simples e direto que esse?) assumiu para o Alcebíades que já o traíra com metade de seus amigos e vizinhos e que tudo era culpa dele e somente dele, Tomás tirou sua vida. Dias antes do texto de Maria ser compartilhado quase que a exaustão. 37 vezes. Horas antes do vídeo de Tomás confessando seu amor proibido ter viralizado no instagram.  Minutos antes de você ficar sabendo disso e ir procurar em seu perfil do facebook esse fato triste, porém real, já que tudo que está na internet é real, como numa verdadeira Matrix, já que nossa realidade triste é tão triste que deve ser mesmo falsificada. Tudo uma falsidade. Mas Alcebíades surtou. Jogou seu celular pra morrer afogado na privada. Deve ter chorado até umas três e meia da manhã.
      A primeira noite sem séries, sem fingir companhia biônica e burocrática que se tornara seu casamento, sagrado matrimonio de merda, sem precisar sair para bater uma no banheiro para qualquer criança violada pelos becos insólitos dos sites piratas, sem os gemidos falsos das falsas atrizes ou os grandes gemidos milionários de bumbuns dublados. Deve ter chorado até umas três e meia da manhã, mas não iria notar nunca. Fazia uns dez anos que não olhava para um relógio, uns treze anos que não pegava num livro, uns 18 anos que não escrevia a não ser seu nome em cheques sem fundo para lojas caras. Chorou tanto que pegou no sono. Sonhou um sonho bizarro. Acordou umas três vezes acordado pelo próprio ronco. Acordou ainda na sala, só de cueca, no desespero achara que tinha dormido na cama, mas o silêncio dos resmungos do mundo e o barulho do telefone agora o confundiram. Abriu a cortina, jogou uma água na cara e desceu até a esquina para comer um pão na chapa. 
       Eram sete da manhã ainda. Era madrugada. No elevador, o som do mais antigo programa de rádio de que tinha lembrança. Vagamente lembrou que tal apresentador havia morrido anos antes. Agora tinha matado também sua dúvida. Lembrava a bem da verdade só pelo fato de ter sido zoado pelos amigos ao partilhar uma Fake News e ainda atrasada. Uma parte do elevador precisava ser reformada, a gravata do porteiro precisava ser trocada, estava suja e gasta pelo tempo. O porteiro era o único que o enxergara naquela tosca manhã cinza, silenciosa e triste. Do 15º andar de onde morava até o térreo, apenas o porteiro o devolvera o “bom dia”. Dezessete meio-vizinhos e nada. Apenas o porteiro da gravata sambada. Seria mera educação, obrigação de empregado, surpresa por vê-lo ali tão cedo naquela ocasião? A síndica, uma ex-amante, a fofoqueira do condomínio, o pastor gay, eleitor do bolsonaro...
      Todos. Tinha todos em seus perfis, como amigos, mas não lhe falaram. Nem um oi, nem um til, nem um bom dia de obrigação eventual. Fodam-se todos. Nada iria lhe separar de comer um pão na chapa naquela manhã. Desviou de duas testemunhas de jeová, um falso deficiente pedindo grana pra sustentar seu vício e de um assalto. Isso tudo antes de chegar à padaria da esquina, na esquina de sua casa. Aquilo era assunto para pelo menos duas postagens em sua página. Se dissesse as pessoas na padaria talvez elas não acreditassem. Mas estava sem celular. “que horas são?” oito horas. Que fazer com as mãos sem as teclas para teclar? Foi difícil pedir dois Paes assados com queijo prato e uma xícara de café com leite. Em sua frente, enquanto esperava pela comida, um jornal impresso. Diário. Do dia. Cada vez mais magro. “as pessoas ainda leem isso?” se questionou internamente. Sorriu pra si. 
     Na padaria, poucos clientes. Todos velhos. Todos ouvindo o rádio e falando entre si. Nenhum celular, laptop, tablet ou coisa semelhante. Os velhos mantinham entre si diálogos. Conversavam, trocavam opiniões, assuntos. Alguns até brigavam, discutiam, chegavam a se irritarem com a opinião alheia, mas não passavam de deixar uma cara feia e alguma frase mentirosa e cordial de “tá bom, eu concordo” mesmo ambas as partes sabendo claramente que aquilo era uma mentira. Comeu, pagou a conta, recebeu um bom e saiu. Agora era hora de ir trabalhar.  
Sem carro. Maria tinha feito questão de levar. (continua...)



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