Pensar Dói...




     As Segundas Feiras tinham um ritual sintomático na minha turma de ensino médio. Mônica entrava na sala e fazia aquele silêncio. Tirava a bolsa das costas, depositava na cadeira, em seguida sentava no birô. Deliberadamente pegava seu livro, abria na página referida e iniciava a aula, tão serena quanto um juiz experiente arbitrava um final de campeonato, fosse da Copa do Mundo, Série A ou B. Esse ritual se repetia três vezes por semana: segundas, quartas e sextas, divididas em gotas milimetricamente testadas de Literatura e Língua Portuguesa. Foi dela a estranha de querer mudar as nossas vidas.
   Mônica chegava silenciosa, deixava a bolsa em cima da cadeira e sentava, calma e subversivamente sobre o birô da sala. Ignorava totalmente o aviso colado na porta ou as passadas de Formigão, “O coordenador” no corredor. “na minha aula mando eu”, costumava dizer isso sem precisar emitir sequer uma simples e qualquer palavra. Nos dias em que Mônica sentava no birô seguia-se uma espécie de ritual sagrado: ela deixava de lado seu livro ou apostila (doutrinadora, dirão uns poucos), sacava um jornal, uma revista, um cartaz, um anúncio e tecia alguns versos de autoria sua, ou frases soltas, variadas, divisando a sala como Noé naquele filme de Cecil B. Demille de 1956. Para alguns, um oráculo, quase uma Srta. Peregrine, para outros, era a encarnação do fim da Sessão da Tarde, o "empata" Malhação, um misto de Antônio Conselheiro do mal, proferindo discursos complexos, difusos, que seriam esquecidos durante a volta pra casa, após a novela das seis ou do jornal das oito. Eram coisas que realmente não faziam o menor sentido ou importavam.
      Certo dia Mônica falou sobre vestibular. Eu já estava no ensino médio, mas aquela seria a primeira vez que ouvia falar naquela palavra. Pra nós era coisa distante, cara, desses sonhos que se tinham quando se era criança. “pensar nessas coisas perto do terceiro ano? Isso não é coisa que se faça. Concluam o ensino médio de vocês, peguem a ficha 19 e procurem o emprego de vocês”. Isso eram coisas que nos diziam a professora da antiga sexta série. Junto com isso ela fazia questão de nos lembras, quase que diariamente, que nunca iriamos ser médicos, doutores, ou qualquer coisa que o valha. Sabe aquela passagem do Malcolm X em sua Autobiografia? É bem por aí e acontece todo dia com as Pretas e Pretos da Favela. Acontece cotidianamente. Acontece nas vitrines das lojas, ao ligar o computador ou a TV. Acontece nas filas dos supermercados. E sorte sua se não encontrar com algum PM envenenado. Às vezes a vida bate tanto na gente, nos dá tanta surra que a gente mal consegue se levantar e Mônica sabia disso. Dona de cinco grandes poderes ousou fazer de nossas vidas um seu legado.
     Saber do futuro era um deles. Nos dias em que sentava no birô (geralmente nas aulas de Literatura- doutrinadora) nos faziam sentir um gosto pelo amanhã, nos fazia voltar pra casa mais leves, trazia lágrimas aos nossos olhos ao explorar um potencial que mal sabíamos que tínhamos. Fazia nos acreditar que era possível, por meio de nosso esforço, construir uma carreira, criar uma família, erguer sonhos para, sem egoísmo algum, alcançar um pouco de conforto, luz e ainda de quebra ajudar aos de perto. Os mais esquerdistas poderão até dizer que ela pregava o individualismo. Que pena. Esses aí nunca leram Chê ou Lênin direito. Não dá pra avaliar a realidade apenas com discursos polidos e bonitos. Nós éramos alimentados pela energia daquela Mestra Genkai que, segundo dizia a lenda dos corredores da escola, vinha de algum lugar do Sertão. Para a maioria da turma (devo dizer isso apoiado em uma triste verdade, pois a verdade não é sempre como a literatura diz) as aulas de Português e literatura eram calcadas num verdadeiro desanimo e tristeza. Na verdade os alunos falavam mais da aula fora da aula, soltavam suas frustrações e dores na figura daquela assalariada que vez ou outra fazia uma greve. Doutrinarista.
     Com o dom de vasculhar o nosso passado, seja ele remoto ou recente, trazia a tona algumas dores escondidas, uns nós nas gargantas, medos de ser e de estar. Tudo usando a literatura e a poesia, a música, para nos fazer pensar. Colocava em nossa frente uma série de escolhas, atalhos, responsabilidades que mal sabíamos que teríamos dali pra frente, fazendo questão de nos fazer enxergar uma estrada de tijolos amarelos que só teríamos que descobrir e, claro, pintar.  E como era grande aquele mundo que nos avizinhava. Mesmo sendo meus amigos e eu aqueles alunos dos mais descolados, mais ligados nas coisas e nas palavras. Ainda assim o mundo era assustador visto daquelas cadeiras remendadas da escola.
     O dom maior da Professora Mônica era transformar vidas, criar caráter, modelar toda aquela argila. A missão da Educadora Mônica era formar todos os tipos de seres humanos possíveis: médicos, engenheiros, enfermeiros, porteiros, advogados, encanadores, motoristas, poetas, cantores, professores. Não sei se ela tem conseguido êxito em sua jornada. Mas parece que sim. Outro dia recebi uma foto dela em uma passeata em defesa da educação. Essa doutrinadora. Com o mesmo sorriso de sempre, a mesma alegria no olhar, aquele ar de quem tem certeza no que faz. Também sorri. Parece que, como a Srtª. Peregrine Dona Mônica também não envelhece nunca. Aquela mulher salvou a minha vida. A minha e a de tantos outros que acho que não dá nem pra contar.

Comentários

  1. Apoiado, negão!!!

    Você com suas palavras me fez voltar no nosso tempo de ensino médio.

    Quem diria que chegaríamos onde estamos hoje?

    Graças a essa grande mulher: Profa. Mônica.

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    1. Pois é. Grato pelas palavras. A culpa delas terem saído assim é de tia Mônica tb.

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