Ele agora senta sozinho
num banco. “Um homem de Deus”. Assim
ele mesmo se nomeia. Quem o vê ali, sentado, sozinho no banco da praça deve até
imaginar que o mesmo é sensato, que tá ali pensando na vida, como um filósofo
aposentado, encasquetado com os problemas do cotidiano da sociedade. “Aguardem um pouco; dentro de instantes o
nosso mestre calvo, com suas rugas e mechas de cabelo branco irá saltar do
banco e nos dar, de bandeja, por sua boa vontade e bondade, todas as respostas
de todas as perguntas que foram e não foram feitas, formuladas, compreendidas
ou postas num papel”. Que nada. O Homem de deus está ali porque não possui
abrigo nem casa. o homem de Deus foi abandonado pelas três filhas que criou
espancando e vendo a mãe ser espancada por esse super herói às avessas. De dia,
um demônio privado e silencioso. Espancava a mulher na frente de três crianças
que eram chamadas pela vizinhança, meio sem saber, meio sem querer, meio omissas
nesse caso, de vampiras. Nós mesmos, eu e meus irmãos, se quer fazíamos ideia
do que se passada naquela casa tão perto da nossa. As meninas mal saiam para
brincar na rua, tomar um banho de sol. Por isso eram quase amarelas. Por isso a
pecha de vampiras, quando, na verdade, era o pai que as trancava dentro de
casa. nem uma janela aberta se via ali. De casa pra escola, da escola pra casa,
de saca para a igreja. E só. Nem lembro os nomes das três meninas.
Três meninas guardadas
e uma quarta mulher, uma mãe, que era espancada todo dia, quase religiosamente,
seja pelo café que passou do ponto, do arroz que ficou um pouco salgado ou
simplesmente porque o Homem de deus se sentia frustrado por ela ser mais
inteligente que ele. Ela queria estudar. Isso eu sei. Ela me disse. Me
perguntou uma vez, na fila da padaria, o motivo de eu ler tanto. Eu ficava
lendo em frente de casa, sentado na linha do trem ao fim de tarde. Se a Sessão
da Tarde não fosse boa eu estava lá antes das quatro. Eu e Machado de Assis. Eu e Carlos
Drummond de Andrade. Eu e o Homem-Aranha
ou o Batman. Eu e a poesia
emaranhada do Alphonsus Guimarães ou
os Versos Íntimos do Augusto dos Anjos (esse de anjo não
tinha nada. Mantinha era distância). “Também
gosto de ler”. Foi a única conversa que tivemos, mesmo ela sendo quase
vizinha de infância. Nem parecia que
possuíamos quase a mesma idade. Ela era muda. Quase muda. De casa pra padaria.
Da padaria pra casa. Da casa pra igreja. Da igreja de volta pra casa. Nem pra
casa da mãe podia ir sem a presença ou a permissão do Santo Homem de Deus.
Cabelos brancos
sustentam uma bíblia enorme no colo, óculos redondos na ponta do nariz. Parece
possuir a sabedoria de Salomão junto à paciência de Jó. Inevitável não lembrar
sua juventude. Tinha na ponta da língua o endereço do inferno. Num púlpito
lustroso, erguia os punhos como um profeta do apocalipse. Emocionava quem o
ouvia pregando a palavra, recitando de cor e salteado versos e mais versos
decorados. O livro de Salmos era com ele. Passava a doutrina como ninguém. Entrava e saia da bíblia num mergulho só.
Expulsava demônios, corrigia os jovens, era um exemplo para quem o via. O
exemplo de Cristo na terra. Nos bastidores era outra coisa bem diferente: traia
a esposa com adolescentes da própria igreja, usurpava parte das ofertas durante
os cultos mais fracos mais com garantia da entrega do dízimo por alguns
incultos. Mandou uma das amantes abortar um filho seu quando ameaçado.
Detestava sexo com camisinha. Dizia que aquilo era sem gosto, que aquilo não
era coisa de deus. Levou a menina numa clínica clandestina. Depois fez questão
de persegui-la dentro e fora do templo, como uma sombra. Quando a mesma começou
um namoro sério com um dos novos convertidos do templo, fez questão de “sujar o caminho” com os pais do rapaz,
com os pais dela e até com as amigas. A moça deixou a congregação. Em casa,
batia na mulher quando questionado ou, por puro ódio, imaginava uma de suas
ultimas presas nas mãos de outros rapazes.
Assim seguia a rotina
naquela casa fria: da cama para a cozinha, da cozinha pra padaria, da padaria
pro fogão, do fogão pra pia, da pia pra sala, da sala pra mesa, da mesa pro
banheiro, do banheiro pra padaria, da padaria pra casa, da casa pra igreja, da
igreja pra cozinha, da cozinha pra cama. E ai dela se houvesse recusa quando o
Santo Homem de Deus era negligenciado por uma das amantes. Não havia desculpas:
dor de cabeça, cansaço, cólicas menstruais. Ainda lembra da vez que lhe quebrou
um braço quando se esquivou de um mais um sexo violento por estar grávida de
seis meses e sem condição de mais nada, depois de limpar toda a casa, fazer o
almoço e o jantar e passar o dia lavando as roupas sujas, os paletós pesados,
manchados de suor das pregações e sermões proféticos de seu marido invejado. Já
pegou camisa suja de batom de prostituta. Bilhete de meninas ameaçando contar
tudo pro pastor fulano de tal. Propositalmente. Ela lia, rasgava, fingia não
ser aquele seu mundo.
Queria mesmo era
estudar, usar um batom vermelho e um brinco de argola, daqueles bem grandes
dourados como viu outro dia na TV da mãe. Em sua casa não. Não tinha TV, som
ligado até tarde nem música alguma. Uma certa vez, por ocasião da nomeação para
o ministério, achou que o marido mudaria de vez. Durou três meses aquilo. Até
desculpa ele pediu. Enquanto transava,
olhando milagrosamente para o seu rosto, disse se arrepender de tudo que fez e
que não era ele era o inimigo que o fazia fazer aquilo, mas agora seria tudo
diferente. Ela, crente, acreditou. Voltou a ter dores no pescoço depois de
torcido, num dia em que o Homem de deus chegou a casa embriagado, após uma
reunião de ministros, todos os homens de deus como ele. A reunião teria sido na
casa do novo presbítero.
O Santo homem de deus
agora vive só e em vão. Conserva a sanidade. Sabe as merdas que fez. Em um dia
de domingo, ao voltar da Escola Bíblica
Dominical, foi pego de surpresa. A casa vazia, mulher e filhas partiam sem
deixar vestígios. Na delegacia, uma denúncia de agressão. Maria da Penha nele.
Contratou um advogado, recebeu apoio da comunidade cristã local, foi tido como
vítima de uma mulher devassa. A solução dada pelos pastores foi quase tão
simples como também sutil: transferido para outro local, casou de novo. Uma
grande pedra foi colocada sobre o assunto. Ela eu não sei. Dizem que voltou a
trabalhar, concluiu os estudos. Agora encontro o escroto ali, velho e farto de
dias. Abandonado mas com uma imagem impecável e sólida de quem finge ser
feliz.
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