1) Derrubaram
dois policiais ali no Beco da Madeira. Foi
tiro pra todo lado. Pipoco que não acabava mais. Milissegundos e toda a favela
já tava sabendo. Favela sim. Não vem com essa de ‘comunidade’ que isso não cola. ‘comunidade’
é pra sociólogo botar em trabalho de escola. Eles vem aqui, sobem o morro, se enchem de fumo e vão embora. Tudo
filho de mainha e painho. Mas essa de comunidade, de falar por nós, de dizer
que aqui é isso ou aquilo, não cola. Dois gambé passeando de moto, de modo
furtivo como sempre, tomando refrigerante sem pagar lá na budega de Seu Noca se achando os donos do lugar.
De repente, dobram a esquina e dão de cara com sabe lá quem, sabe lá onde, sabe
lá por que. Sabe Deus quem. E tome tiro.
2) João Alcebíades
e Bruno Aurélio Torres. Nomes pra
você aleatórios. O primeiro tinha três
filhos. Dois com sua amante. Mas eu não tô aqui pra julgar ninguém; só quem
pode julgar é Deus. O segundo era um menino ainda. Tinha acabado de tirar
carteira de motorista se brincar. Se brincar tinha entrado na polícia agora. Se
brincar sabia nem onde tava pisando. E aqui lá é lugar de brincar, moço?Eles
vinha na principal, rua doze, saíram da budega, montaram na moto, deram uma
volta na Praça do Galo e depois, sei que desgraça pra quê, entraram no Beco da
Madeira. 26 e 36 anos. Nomes
aleatórios. Porcos fardados. Mas não estamos aqui defendendo ninguém. Mesmo.
Dobraram no beco e deram de cara com Zé,
primo do dono da boca, o rei da favela. Deu nem tempo de sacar a arma. Zé e
mais três estavam de cano pronto, com bala até no dente. Não deu outra. João, que entrou de peito, levou três
tiros na cara. Bruno levou só uns
dois de raspão. Escapou fedendo.
3) Os meninos saíram correndo, subiram o
morro, baixaram lá no terreiro, fumaram um pra empatar, olhar o ambiente, ver o movimento, se subia alguém de
preto, depois foram lá no pastel de Tia
Beta matar a larica. De repente a favela virou um túmulo. Silencio total
em plena sexta feira. Ali ninguém sabia de mais nada. Nenhum transeunte passando despercebido pelas quebradas. Dona Mariinha, a maior fofoqueira das
redondezas voltou a se apegar com
Deus de novo. Tava lá rezando. Até o barulho da novela cessou. Hoje a favela
vai dormir mais cedo entre gemidos de namorados, choro de criança de colo e
sussurros entrecortados. Lá longe um cachorro solitário latindo pra lua, revoltado
com a fome e a desgraça. Todo mundo sabe quem foi, onde estavam. Todos sabiam
que aquilo ali não terminaria bem, não iria muito longe, não daria, nunca dá em
nada. Mas agora todos calam.
4)
Duas da manhã. As viaturas baixam. Como uma invasão alienígena, luzes e barulhos
rompem o silêncio da favela, agora quase um túmulo. “matar um policial em plena sexta feira? Coisa mais idiota”. E tome
baculejo, tome arranca-rabo, puxão de orelha, invasão de barraco. Nada adianta.
Há uma lei implícita na favela que diz que polícia não dialoga com morador. João e Bruno são figuras carimbadas por aqui. O sorriso de bom dia, no
fundo no fundo eles sabem, é só pra disfarçar. Não tem diálogo com gambé por esses lados. Cinco horas da manhã e ainda tá rolando o
esculacho. “Braços e pratos quebrados
pela calçada”. Quando esse tipo de coisa acontece (e realmente acontece) o
tecido do tempo fica um pouco frágil. Amaral
e Pablo, irmãos gêmeos (um pai de santo, o outro pastor
evangélico) voltaram a se falar na porta da delegacia, depois de um braço
quebrado e R$600 do apurado da oferta dos fieis. “O vento que passou na favela levou mais que tudo”.
5)
De manhã, ainda silêncio. Olhares desconfiados
para o chão. Uma nova leva de alienígenas baixa no local. Os raivosos da
madrugada se foram. Voltam de noite, madrugada, com suas metralhadoras,
pistolas e máscaras. Esse suplício irá durar até quem sabe. Até
o meio dia de hoje haverá silêncio por aqui. A nuvem de polícia irá durar pelo menos uns 15
dias. Vai morrer gente inocente, vai morrer bandidos, meninos de 12, 13 anos, a favela vai virar ‘comunidade’ no noticiário das seis até tudo poder voltar a
normalidade, as cervejas geladas tomarem de novo seus devidos lugares na mesa
do bar de Seu Lúcio e João e Bruno se tornarem apenas espíritos errantes tirando o sono dos que
vigiam as ruas na madrugada. O guarda do apito, (que viu tudo) voltará a sua rotina de não ver nada na noite. “Ele não é o Batman nem ganha para tomar
tiro no peito”. “Certo ele”. “Bala no peito não é medalha”. Dias depois
tudo não passa de lenda urbana. Causo de canto, conversa de fila de padaria. Meninos
jogando bola de gude numa rua esburacada. Nem vão lembrar que ali esteve uma
poça de sangue outro dia desses, levado pela chuva que caiu no Recife uma
quinta dessa. Daqui a algumas horas esse mesmo beco vai voltar aos noticiários
por alguns instantes. Mais uma pessoa irá morrer. Dessa vez, soterrada por
qualquer barreira. As barreiras, aliás, deveriam ter nomes. Mas a grande
surpresa é ver que ainda existem crianças brincando de bola de gude nos dias de
hoje. Não sei se elas tem TV em casa, se possuem telefones. Mas se divertem. Apesar
de tudo.
6)
O texto segue pro mundo. Nem precisa
ser corrigido. Há tanta coisa para se corrigir, pra quê se preocupar com
algumas poucas palavras que serão lidas por bem poucos? Pra quê maneirar no
assunto? Pra quê pegar leve, pintar um mundo que não existe? Mas as crianças
brincam. A esperança persiste, mesmo que sem quase poesia alguma.
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