Pão e Sopa...





     Meia noite e meia. Na praça grande, chega um dos carros da caridade. Trás consigo o bocado de sopa e pão. Na praça, aparentemente sem forma, escura e vazia, aquele acontecimento ganha ares de festa ou comemoração. Na organização do movimento, pessoas bem vestidas, trazem consigo suas roupas impecavelmente brancas, bíblias e terços nas mãos. O motivo, não importa. Se são crentes, católicos, espíritas, budistas. . . Se creem em azar, sorte, destino ou reencarnação. O que chama atenção mesmo é o tamanho da fila. Assim, do nada, parece surgir uma nuvem de pessoas, famílias inteiras, crianças de colo, mulheres e idosos de mãos abertas, esperando por aquele pão (dormido ou não), aquela sopa (requentada, então?), remédios para quem tem fome ou para um daqueles de um branco impecável, deitar sua cabeça (agora tranquila) num travesseiro de plumas importadas, seu pijama de luxo, respirando aquela falsa sensação de dever cumprido, mas a sopa esfria e o pão acaba, e aquela nuvem de indigentes sem nomes sem almas ou documentos volta às sombras, para serem esquecidas na manhã seguinte, voltando a serem meras estatísticas, fotos no facebook para comover com “likes” e comentários nossa ilusão.
     Meia noite e meia na praça. Sai o carro da sopa, chega o carro da polícia. Distribuindo balas, desaparecendo corpos, jogando ainda mais para a escuridão das praças e das cidades aquelas pobres vítimas dessa indigesta situação. Pobreza não dá IBOPE nem ganha eleição. Em épocas de redes, que prendem, tudo é motivo para gerar ilusão. “fulano dá caridade de tempos em tempos”. Diz a matéria de capa da revista cara, paga, vendida, que servirá de lençol amanhã ou mais tarde, depois de um dia de sol e chuva, numa madrugada qualquer de frio ou desapego com a vida, ilusão. Todas as redes sociais preocupadas com a ida do ex-deputado para a Europa, enquanto o presidente surfa na lama, desviando o foco da corrupção de sua família, espalhando mentiras ainda mais perversas, enganando ainda mais nossa população.
     Seis horas da manhã. Três corpos estendidos no chão. Ao lado, pratos de sopa, pedaços de pão dormidos, restos de papelão usados como teto, cama, abrigo, colchão. Três corpos sem nome, sem rosto, RG nem CPF. Agora não adianta mais pão, sopa nem caridade alguma. Não adianta mais agasalho, restos de peru de Natal nem versículo bíblico. Seis horas da manhã. A capa do jornal diário fala sobre qualquer coisa, qualquer outro assunto desimportante. Ali, sol e olhares enojados passando apressados, dando de ombros, fingindo que não. “Corpos esquecidos em calçada” bem que poderia ser uma das notícias de capa daquele jornaleco vendido. Fim de tarde. Chuva. Novos olhares indigestos daqueles que se acham os donos da rua. Mas hoje não. Hoje não vai ter sopa, não vai ter pão, não vai ter papelão que cubra os gritos abafados pela impunidade das ruas. Meia noite e meia na praça. Chega de novo o carro da sopa, o pão, a repressão. . . Começa tudo de novo outra vez. Chega o carro da ilusão e da esperança, junto com a hora de dizer não.

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