Arrecifes 1



Michelle
(ou “O dia não está nem pra Pagode”)

Naquela segunda feira Michelle estava, definitivamente e mais um pouco, muito puta da vida. Sabe quando dizem que o mar não está pra peixe? Era um dia daqueles. O dia não estava nem pra Pagode. Michelle era professora do primário. Separada do ‘traste’ do marido, como costumava chamar, ainda carregava, discretamente, a antiga aliança do casamento, dada como sinal de compromisso depois de um pedido de casamento bem sem noção num dia de piquenique de domingo. A aliança teria sido herança de família há gerações. Na real, não acreditava mais nisso, porém, (não se sabe) ainda a trazia consigo, sem conseguir tirá-la nem para lavar as louças, coisa que, depois da hipocrisia masculina do casamento, mais odiava. Michelle era professora, mãe de três meninas: Úrsula, Marina e Ângela. Sustentava uma casa de aluguel praticamente sozinha e tinha como estímulo de vida o orgulho por seu nome, seu passado familiar distinto e a busca por um futuro melhor, pra si e pras suas filhas. Seu pai era poeta e cantador. Conhecidíssimo pelos seus acordes dissonantes, sua métrica redondinha e seus belos olhos azuis.  Mas, naquele dia em especial, o dia não tava pra poesia alguma.
Segunda de manhã, pega o ônibus, entrega duas cédulas e espera, não tão calmamente, a certeza de receber de volta duas moedas de R$0,10. Mas elas não voltam. Vinte centavos. O cobrador sabe lá porque, esqueceu de devolver as duas moedas. O mundo de Michelle, que tinha recebido esse nome de seu pai, fã dos Beatles, agora desabara de vez. Michelle morre de medo que as filhas se ‘desviem’ por conta dessa tal de internet. Mesmo sendo professora, assume e não entende a tal da ideologia de gênero. Não quer que as filhas virem gays. Passa todo dia em frente ao mar e não transa tem bem uns seis meses. Perdeu até as contas. Aí o cobrador esquece de lhe devolver o troco. A música do Paul MacCartney na sua cabeça a mil, mil contas para pagar, as contas que precisam ser feitas, as contas que não param de chegar e um cobrador que não sabe fazer conta, apesar de ganhar dinheiro pra isso. Todo dia passa de frente pro mar. Quanto tempo não aproveita uma praia? De fato, o dia não tava pra mar, nem pra peixe nem pra Pagode.
Do outro da ‘borboleta’ um negão de um metro e oitenta. Seu ex-marido disse não ter grana pras meninas esse mês de outubro, porém, agora, a camisa xadrez do negão um metro e oitenta lhe prendeu a atenção. “minha bela, palavras que vão bem juntas”.  Michelle deseja ‘fuder’. E ‘fuder’, assim, desse jeito, com ‘U’ mesmo. ‘Fuder’ sem medo e com vontade, sem precisar recorrer ao verbo transitivo direto, gozar com sentido completo, chegar ao ápice do completo com ou sem o uso de objeto direto ou indireto. Transar sem precisar gramaticar absolutamente nada. “ah! Mais você agora vai reduzir a sua vida ao sexo, a uma mera trepada?” isso diz suas amigas. Vão dizer. Michelle quer gozar, sentir a saliva na boca, a mordida no lábio inferior, arranhar as coxas e as costas, sentar delicadamente sobre o tônus excitado, ereto, duro, penetrando vagarosamente sobre seu corpo suculento e molhado de suor e gozo. Sete e meia da manhã e ônibus lotado. Duas moedas de dez e um negão de um metro e oitenta soltando uma olhada em sua direção. E ela imaginando. “Qual será o nome dele?” “Vou chamar de Jorge!” “Tem cara de Jorge!” “Salve Jorge!”. A manhã inteira em sala de aula, cuidando dos filhos dos outros enquanto suas filhas crescem a odiando (pensa). O dono da casa (alugada) soltando gracinha a toda hora pelo whatspp e o salário minguando. Mas agora ela ri de volta. Senta ao lado do seu pedaço de mau caminho e ri de volta. Não custa nada tentar. São só vinte centavos. O mundo pode pegar esse meu troco nessa minha volta.   

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