A pior virada de ano de nossas vidas





 Naquele dia José acordou mais animado do que pinto no lixo. Dia 30. Era um domingo. O ultimo domingo do fatídico ano de 2018. O ano havia sido tão imprensado, tão corrido, tão agoniado, que qualquer barulho de manga caindo no telhado era motivo para se pensar ser um tiro. Qualquer “bom dia” era um “mãos ao alto”. Quase qualquer engarrafamento era confundido com protesto na rua. Sabe o “Milagre dos Peixes” de Milton Nascimento?  Quase todo censurado, quase esquecido, quase calado há uns anos atrás. Tempo de chumbo. E nuvens parecidas formavam-se novamente em nossos céus em janeiro, fevereiro, março de 2018. Quase ninguém viu. Mas, naquele ultimo domingo do ano, José tava nem aí pra isso. Tudo era “beleza de creuza” pra ele. Segue o baile sem dança e sem som. Nas ruas do Recife uma mistura de Anitta e Astor Piazzolla. Uma confusão danada. Uma confusão daquelas. Um tumulto digno de fim de ano, de filme de fim de ano, de desespero de um fim de ano que vai acabar. “calma gente! Vai acabar o ano, não o mundo!”. Era bem esse o pensamento de José. Dois dias antes, Joana, garota discreta e linda de seu bairro, amiga da família tem um sei lá quanto tempo, aceitou casar com ele. E isso no dia de seu aniversário: 18 de maio de 2019. Pensando bem, José não tá nem aí se o Bolsonaro vai ou não conseguir terminar o seu mandado. Alugou uma casa, comprou uma cama Box no Black Friday, não foi assaltado esse ano e está trabalhando tem uns três meses. Agora José é autônomo. Entregador de comida em sua bicicleta. “entrega delivery”. Ganha uma mixaria por semana, uma ninharia por mês, uma mixaria por vida. Ainda assim acredita. Acredita mais que esse narrador incrédulo e pessimista.
Astor Piazzolla tocando na bike de José enquanto ele faz a entrega e pensa em Joaninha. Joana vai a igreja, religiosamente. E digo isso pelo fato de nem todo cristão ser assim tão praticante, tão crente. Joana doa aos pobres, entrega o dízimo, vai a missa toda a sexta feira de manhã, pede pra Deus abençoar e proteger os caminhos de José, a quem ela ama tem tempo. Ama assim que pôs os olhos nele, isso ainda na terceira ou quarta série. Autônomo. Empreendedor. Dinâmico. Vários adjetivos para classificar esse “lá” e esse “aqui”. José não para. Escutando seu Piazzolla bem alto em sua bicicleta, batalhando o pão, o aluguel, o feijão e o pé de meia pra casar. “Papai Noel não vem se a gente ficar esperando”.  Já reparou como o mundo anda com o freio de mão puxado quando chega perto da ultima semana do ano? Para o José tem isso não. Assobia um tango e morre aos poucos na Avenida Recife, Cruz Cabugá, 17 de Agosto, Rua da União, Imperatriz, Conde da Boa Vista, Aurora, Caxangá. . . As ruas do Recife param quando chega a ultima semana do ano. Tudo parece andar mais devagar. Menos a bike de José que, coincidentemente, se chama esperança.
Mas hoje ainda é dia 30. Daqui a pouco um fascista irá subir a rampa do Palácio do Planalto. A Praça dos Três Poderes será transformada na Torre de Mordor, onde viverá um Sauron tupiniquim, que não sabe nem ler e que governará o país na base também da magia. Nas ruas, onde habita o quarto poder, milhares de Josés seguirão seus cursos e seus rumos. Ouvindo ou não seus Piazzollas. “Adios Nonino”, “Café 30”, “Soledad”, “Fugata”. . .um tango bem alto para segurar a brisa do dia. Segurar a nuvem que vem nesse céu nublado. “Tava tudo indo tão bem, de repente, chuva!”. Foi assim que eu conheci José. Voltando da padaria num fim de tarde. Ele vinha bem devagarzinho. Indo ou voltando de uma entrega pelos arredores da cidade? Meio escuro, tocando Piazzolla em seu “cebruthius”. Cheio de esperança na cabeça. De repente, passa num buraco, de leve. Leva um tombo, cai de cara no chão. A bicicleta, em seguida, pega de cheio seu “quengo”. Sangue pra tudo que é lado e pedaços de dente. Deu pena. No caos do Recife agora imperava o silêncio. Esperança no chão, José erguendo-se desanimado. Era a ultima entrega do dia. Era a alegria de voltar mais cedo pra casa. Era a certeza de um mais um dia vencido. Acabado. Agora o Recife e o mundo inteiro silenciavam para ver qual seria a atitude de José, aquele guerreiro, sustentador do mundo, pai de mais um menino Jesus futuro, um trabalhador que tecia seu futuro de mão em mão, de linha em linha, dando nó cego no mundo e driblando cada obstáculo que ninguém via nem merecia. Pega o telefone, bate a poeira, fala com Joaninha.  “Quebraram o meu sorriso, Joaninha!”.   De qualquer jeito, volta mais cedo pra casa hoje. As luzes da cidade acesa, agora indiferentes, sussurram seu nome pela madrugada. Um burburinho medonho, uma agonia danada. “vocês viram quem foi que caiu hoje mais cedo?” “ficaram sabendo da mais nova?”. . . De manhã era só isso que se falava. Mesmo assim, com um dente e meio quebrado, lá está José, no outro dia, de pé, anestesiado, pronto para enfrentar mais uma vez a cidade. Ele foi pra casa. Deitou mais cedo. Fez as pazes de novo com a esperança e decidiu de novo caminhar. Afinal “O dia é feito de chão, poeira e estrada”.  

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