Cais. Recife antigo. 2008. Foto do autor |
Domingo de noite, com a
cabeça cheia e nada na carteira, decido sair pra andar na cidade. Não sem
motivo. Vou ao banco, motivo melhor não há. Ir ao banco e finais de semana,
sobretudo em cidade do interior, é uma das coisas mais próximas do divino.
Aliás, essa é uma das vantagens de se morar no interior, além do luar. Sempre
achei enorme crueldade comparar as grandes capitais com as cidades do interior.
As vantagens das capitais não se batem com nossos pequenos detalhes que dão
vida a nossa vida e a esse lugar. Domingo de noite no banco. Mais ou menos
quarentas minutos da minha casa até o centro da cidade, programa esse que faço
de pé, umas duas a três vezes, ao depender do dia. Mas minha cabeça estava
cheia de problema, pouco afeita pra imaginação. Parece que todas as armadilhas
e más notícias do ano, decidiram vir todas juntas, de uma vez, me tirar o
juízo. Acabo de fazer trinta anos. Na gaveta do meu quarto, um livro pra ser
lançado no mundo. Lançado ou jogado? Não sei. Receio.
“Não
se pode culpar alguém por sonhar”. Essa frase não é minha.
Ouvi em um dos episódios do seriado Anos Incríveis. Faltou internet em casa e
me pego, quase sem querer, assistindo essa série da infância novamente. Será
que estou colocando a vida na balança antes de seguir em frente? Hoje a noite
vai passar um filme falando mal da Coréia do Norte. A falta do absurdo. “nada
pra fazer; bora gravar um filme falando mal da Coréia do Norte”. Peguem seus
lucros e repartam com as famílias das crianças mutiladas pelo exército dos EUA
em suas invasões. . . Esses sim tem conta pra pagar. Na esquina uma criança
briga com a mãe. Ela deve ter uns seis anos. Grita algo alto, referente ao que
ela não deixou falar. Duas ruas depois, outra pequena xinga a avó: “a senhora
não se meta! Você não sabe nem o que falar!”. Nas cidades do interior as casas
ainda ficam abertas nos dias de domingo de noite. Acho que deve ser por causa
do calor. Hoje estão abertas as portas, apesar do frio. Famílias indo pra
igreja, todos com seus cassacos de frio. Não deixa de ser engraçado. Naquele
prédio funcionava um cinema. Agora é uma igreja Universal. Sempre recebo um
jornal atrasado, junto com um convite pra visitar o templo. Sempre digo que
não. Ainda assim há o convite. Trinta anos. Minha sogra, diagnosticada com um
câncer, luta de seu modo pela vida. E eu aqui.
Minha mulher está com depressão, cheia de coisas na cabeça. Meu pai só
me manda vídeos de corpos estirados, pessoas acidentadas, queimadas, mutiladas.
Toda vez que recebo uma bomba dessa, me pergunto quando vou bloqueá-lo, pra ver
se chamo sua atenção. Mas só penso. Mais tarde vou sentar na frente do
computador, colocar um disco da Cássia Eller pra tocar, tentar escrever alguma
coisa pra esvaziar a cabeça.
O banco está vazio.
Dois cachorros vigiam o lugar. Se abrigam do frio. Fosse segunda de manhã isso aqui seria outra
coisa: o cartão iria dar erro de leitura, não teria nota no caixa, a fila seria
tão grande que te faria se sentir ainda menor. As más notícias não param. Sua
mãe acaba de ser, novamente, internada. Que lástima ter que depender do SUS.
Meninos andam de bicicleta na praça da igreja matriz. Eles parecem não ter ou
não se preocupar com celulares ou tablets. Nem tem relatórios pra fazer.
Dormirão mais tarde hoje, já que estão de férias até mês que vem. O gerente do
banco acaba de passar por mim. Deve ter ido pra igreja. Fosse numa capital ele
jamais faria isso. Ele passa por mim e ri. É como se ele tivesse feliz em me
ver sair de seu banco, contente por se sentir útil ou algo assim. Minha
sandália tora. Procuro na bolsa um arame pra concertar a danada. Passa um carro
da Progresso indo pro Recife ou qualquer lugar. Na casa ao lado toca Cazuza. “O
nosso amor a gente inventa”. Toda vez que vejo um ônibus da Progresso me
aumenta a vontade de ir embora. Mudar. Embora. Aqui não me cabe mais. Que
egoísta, não? Toda vez que eu vejo um ônibus indo pra algum lugar me dá vontade
de embarcar, ir daqui. “em boa hora?” sabe que nem sei. O ônibus passa e sinto
a brisa. Ajeito minha sandália. Vou
voltar pra casa, ler Neil Gaiman, ouvir Cazuza, cozinhar alguma coisa pra comer
mais tarde. Deixar a porta da frente aberta, olhar as crianças voltando pra
casa, o barulho da rua, sorri. E o riso vem do nada e sem pedir licença. Já não
há mais o peso do mundo nas minhas costas. “Amanhã vai ser outro dia”.
Comentários
Postar um comentário