Urgente



Quarenta e oito horas. Anunciou o jornal das oito em ponto. A partir da meia noite, exatas meia noite, o mundo iria silenciar. “O dia em que a terra parou”. Seria uma prévia para outro apocalipse. Naquele dia, de tanto querer não dormir, acabei pegando no sono, na cadeira de balanço da sala da casa, que parecia gasta agora, velha, um pouco suja, encardida, fora do lugar. “Somos todos iguais essa noite”. Era o que tocava no DVD da sala. O “rádio” havia quebrado fazia três ou quatro meses. Ele era daqueles que pegava três CDs de uma vez. Eu gostava de colocar três CDs totalmente diferentes, um rock pesado, uma MPB leve e um POP calminho e apertar o “shuffle” e era uma delícia. Tocava um Creed, misturado com um Lulu Santos, depois entrava um Embaixadores de Sião ou um Fruto Sagrado. Rodox? Nem se fala! Eu e meus irmãos colocávamos o som pra tocar, subíamos no muro de casa e ficávamos nos balançando numa palha de coqueiro caída do quintal do lado. Coisa mais subversiva não havia. Isso era escondido, longe dos olhos cuidadosos de minha mãe, dos ouvidos entregadores de nossa irmã mais velha e do vozeirão de locutor do meu pai. “Isso acaba com o muro!”, “olha como ele tá, todo mole!”, “vocês num tem o que fazer, não?” e lá tínhamos? Quando se tem seus doze, treze anos não se pede nem se espera muita coisa do mundo, da vida. A gente queria montar uma banda, fazer mais sucesso do que os Beatles e mudar o mundo. E ainda achávamos que isso era algo ainda inédito, nunca antes visto no esquema “Cinema em Casa- Sessão da Tarde- Cavaleiros do Zodíaco”.
Mas, naquele dia seriam quarenta e oito horas iniciadas naquele exato momento. Sua mãe já não era a mesma de sempre. Estava velha, cansada, seu corpo já não mais correspondia a seus desejos. Os cabelos brancos, tão espantados com toda a calma do mundo, agora pareciam vir com toda força do mundo. Eram como as ondas na beira da praia, engolindo os prédios invasores de seu território. Lembrou que fazia meses que não sentia o cheiro da maresia, olhava as ondas se mexerem de verdade. Se molhar? Isso era assunto para falar de férias. Somente. Antes iria a praia todo santo dia, bastava apenas um motivo. Pegava a bicicleta e se danava no mundo. Agora a infantilização, tão falada em salas de aula e grupos de estudo lhe perseguia. Fazia uns três meses que ele não olhava pro céu azul, as estrelas, brincava de achar forma em nuvem. “Meu amor, o que você faria se o mundo fosse acabar?” e quando chovia a gente corria na chuva, sorria, porque chover e sorrir rimava. Não como uma mera análise literária, pragmática, formalista, semiótica, empirista, dogmática, estruturalista. Nada disso. A gente corria na chuva porque gostava, porque era “massa”, porque a nossa mãe dizia que não era pra fazer isso. “Sai da chuva, menino! Tu vai pegar um resfriado!” E quem ligava?  Nosso tutorial era a rua. O curtir não era efêmero. O bate papo na roda de amigo visava a “tiração” de onda, e não precisávamos nem de consultar o dicionário popular para saber como se escrevia a palavra “tiração”. –“Que porra nenhuma, dizia meu primo Jessé, vamo é tirar onda!” E a gente ia. Oito amigos andando umas onze horas da noite, a pé, pra tomar UMA CERVEJA em época de lei seca. Tínhamos que tomar. Dar estrelinhas no meio da rua, perder o colar que havia custado uns três contos (aquilo era uma fortuna), fazer uma cota pra comprar pão doce e refrigerante, isso justamente por causa das aulas que nunca tinham. Entrávamos na escola às uma e quinze. Duas e meia já não tínhamos aula. A rua era mais legal que a nossa casa, nossa sala de aula e nossa turma de escola. Eita turma chata!
Por volta das quatro e meia fazíamos aquele minuto de silêncio. A bela da outra escola iria passar em nossa frente. Ela era linda (sim, Suedja, era você a bela da tarde. Mas não pense que nós não sabíamos que você segurava aquele livro daquele jeito só por nossa causa). Ela passava e a gente ficava calado. Não havia magia nem machismo ali. Ninguém dizia nada. Nunca ninguém disse uma palavra sobre aqueles minutos e a bela da tarde. Como éramos “tabacudos”. Só uma coisa nos fazia ir mais cedo pra casa: o anuncio da Sessão da Tarde de “Curtindo a vida Adoidado”. Era esse filme passar e a nossa turma “gazeava” aula. E ele passava uma vez no ano. Eu não perdia. Mesmo quando Deus (ele mesmo) mandava meu pai, solenemente, vender a televisão para nos livrar do inferno. Quarenta e oito horas. Isso não era nada. Era motivo pra arrumar assunto.
A vida era mais simples. Menos complicada. Interessante que a tecnologia foi criada para facilitar nossa vida, aproximar pessoas. Mas meus pais ficam sentados em sofás diferentes, ela na cozinha, ele na sala. Ambos colados com a cara no celular, no Tablet e o silêncio toma conta da casa. Dá pra ouvir o barulho das aranhas tecendo suas teias. Rede social foi feita pra gente deitar, ligar um ao outro ou pra pescar nossa consciência? E tome topada no meio da rua. E tome péssimo humor de madrugada. E tome inutilidade, nudes, nudes e mais nudes. A ultima tragédia vai durar assunto pelas próximas duas horas em alguma rede social dessa aí. Cada um vai lançar sua crítica a crítica a quem faz uma crítica baseada na crítica vazia de uma questão. Profundidade? Quem precisa? Você copia e cola, escreve qualquer merda que viu em algum lugar e, se errar, o corretor faz o serviço todo. Não se preocupe! Só não faça nada muito longo, cumprido. A “tendência” textual do momento é o microtexto, o micro site, o micro blog. . . Mas a micro-saia continua sendo alvo dos mais incríveis e absurdos comentários conservadores de outrora. Só mudaram de localização. Hoje estão mais escancarados. O reino do senso comum perdeu o senso faz tempo. Qualquer babaca pode sentar na frente da merda de um computador (como esse babaca está fazendo agora) e escrever qualquer tipo de porcaria. E ele deseja apenas dois ou três “likes”, uma carinha feliz, um partilhamento ou simplesmente criar um debate que dure, sei lá, três segundos.
Quarenta e oito horas. Eu estou entrevado, com tendinite, má-circulação, estressado, insone, carrancudo, falando sozinho, sorrindo sozinho, transando sozinho, comendo sozinho, sozinho e falando com o mundo. Aprendi em algum blog qualquer de um indivíduo qualquer, sem qualquer preparo duas palavras novas: “Heterofobia e Misoginia”. Heterofobia o Word disse que não existe. Mandou eu corrigi. Eu fingi que não. A máquina pensante, o Nerd aqui sou eu. E eu uso duas palavras novas por semana, cassando vítimas no facebook para duelar e manejar minhas duas novas palavras semanais. Semana que vem uso mais duas, descarto as antigas. Minha memória RAM não faz tanta questão com quem está do outro lado. –“vá estudar minha filha!” e pronto! Li na Wikipédia os nomes de três desses caras fodões: Bakunin, Proudhon e Apolinário. Afinal, quem matou o POP? Quarenta e oito horas. Eu ouvi meu vizinho, agora barbudo, me dizer um bom dia. Respondi de volta. Peguei um livro velho, grande, de capa dura.

As pessoas serão obrigadas a conversar nessas quarenta e oito horas?
A olhar nos olhos uns dos outros?
A usar a boca no lugar das mãos? Falar? Ouvir e responder “bom dia?”
Será que vai dar tempo de olhar o céu nessas 48 horas?
Ou crescerá assustadoramente o nível de depressão, angústia e ansiedade país a fora?
Antes isso importava. "Me abrace e me dê um beijo. Faça um filho comigo. Mas não me deixe sentar na poltrona num dia de domingo". . .  

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